Eles Voltam, de Marcelo Lordello (Brasil, 2012)

março 23, 2014 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Filipe Furtado

O corpo e o mundo
por Filipe Furtado

Eles Voltam começa sob a sombra do abandono. Haverá dois irmãos sozinhos à beira da estrada, informações desconexas que sugerem que seus pais os deixaram ali, e o tempo que passa – um tempo de expectativa sobre o possível retorno dos pais e do temor deste espaço desconhecido (o barulho dos carros a cortar a estrada é muito bem utilizado para estabelecer a intrusão de risco na sequência, em contraste com o habitual uso da figura do outro na nossa ficção). Eles Voltam, o próprio título, sugere tanto a espera – é um paradoxo curioso este filme de estrada que é também um filme de espera – como a ideia de filme de horror, que permanece no subtexto or boa parte do filme. Durante cerca de dez minutos, Marcelo Lordello esculpe cuidadosamente esta tensão, que é maior justamente pela forma com que o filme nos lança sobre ela, reduzindo-a ao mínimo de elementos possíveis: dois jovens atores numa chave de pânico muito contida e o peso da presença da estrada.

Mas o irmão também some e a jovem fica só, até ser abordada por um rapaz da região que se oferece a ajudá-la. Neste momento, Eles Voltam passa de um espaço que permanece um conceito muito distante, uma abstração do imaginário da nossa classe média, e passa a preenchê-lo. O mote central é o do filme de terror às avessas: está ali, em cena, o pesadelo maior da família – o filho perdido na periferia –, e busca-se localizar nele elementos que o esvaziem. O arco dramático aqui não deixa de ser uma extensão ficcional da forma como Lordello e Ivo Lopes Araujo articulavam o peso das longas noites que a equipe de filmagem compartilhava com os trabalhadores de Vigias (2010), em que o mesmo gesto de repartir o momento e se mover rumo a um espaço de fronteira que anima este novo trabalho já se apresentava de forma muito bem resolvida. No filme anterior, tínhamos a nossa cultura do medo e este espaço externo que ela procura negar; aqui, sobra justamente o desejo de reordená-lo, movendo-se aos poucos deste filme de horror ao filme de formação. Este salto da abstração ao concreto é bastante compreensível, dados os interesses do filme, mas ele jamais voltará a animar seus elementos com a mesma força depois desta passagem.

Eles Voltam 2

Pois Eles Voltam é um filme construído a partir de uma série de ambivalências e contradições. Há um claro desejo de ficção, visível por toda a encenação de Lordello, que é frequentemente sabotado pela forma como o vigor dela encontra sua melhor expressão na opacidade. Se a sequência inicial do filme é o seu grande triunfo, é justamente porque ali tal opacidade pode se efetivar com maior força. A dramaturgia pede por um desenvolvimento que faça valer seu rito de passagem, mas o filme fraqueja justamente quando precisa encontrar sentido nas coisas. Nos seus piores momentos, Eles Voltam se assemelha a um filme de tese um tanto óbvio e didático sobre privilegio, com os sentidos todos dados a priori, e o filme se esforçando para localizar algum vigor neles.

O filme reage a dois elementos muito caros ao cinema brasileiro recente: o sentimento de orfandade (bem discutido na crítica da Fábio Andrade, à época do Festival de Brasília) e a estrada.  Em alguns momentos, Eles Voltam parece soterrado pela necessidade de responder a eles, muito consciente dos seus significados e também do que seria seu lugar na história do cinema brasileiro. De certa forma, o filme existe no outro extremo estético-ideológico de A Busca (2012), de Luciano Moura, lançado à mesma época, mas não deixa também de apontar justamente as dificuldades que temos de lidar com este imaginário da estrada e do outro. Não é um acidente que Eles Voltam se resolva melhor quando pode lançar mão do fora de quadro ou envolver a ação na opacidade: o encontro direto é sempre desconfortável. O filme tem a abertura e curiosidade que inexistem em A Busca, mas não consegue articulá-los para além do funcional e ilustrativo. Assim como os vigias de Vigias eram falsos protagonistas a servir de conduto para a cultura de medo da classe média do Recife, aqui também boa parte das experiências da protagonista perdida tem grandes dificuldades em existir pelo seu próprio valor. O espaço que o filme corta jamais escapará da condição de refém do seu caráter simbólico.

A graça de Eles Voltam se encontra bem longe dos seus significados: na forma como frequentemente o filme mapeia uma série de reações diretas à sua situação inicial. A atuação de Maria Luiza Tavares é exata justamente por consistir de uma serie de negociações com o mundo à sua volta, em um conjunto todo de reações, sem que isto jamais torne a personagem simplesmente passiva – algo bem raro de encontrarmos. Ela menos interage com os vários personagens que encontra do que se posiciona diante da presença deles. Se o arco de filme de formação de Eles Voltam se realiza, é justamente porque a abordagem de Lordello e a presença de cena da atriz transformam toda a carga simbólica do projeto de preenchimento do filme e a devolvem para o concreto.

O filme permanece curiosamente distante da sua protagonista, acompanhando-a com certa frieza, curioso pelas suas reações, mas com pouca adesão ao seu drama de formação, o que ajuda a estabelecer seu tom ambivalente, assim como a entrecortar o caráter alegórico da sua ficção. À personagem de Tavares, jamais será permitido existir como a pobre menina rica ou como uma coitada abandonada, mas sim como quase uma extra terrestre travando um primeiro contato. Com isso, o abandono inicial se revela um primeiro estágio de um filme cujas margens constróem um raro retrato negativo da influência da família. Se por fim seu título segue sugerindo uma obra de horror, a ameaça é menos o fora de quadro da sua sequência inicial do que a volta à casca da proteção familiar, e a atriz é muito hábil justamente em sugerir como o deslocamento e desconforto da sua personagem só aumentam após voltar para casa – e, nesse sentido, é uma pena que os avôs da garota surjam em cena na parte final exclusivamente para explicitar esta premissa em praticamente todas as suas falas e gestos. O abandono é reconfigurado de um sentimento de desolação para o de possibilidade.

Diante de todas as suas ambições, Eles Voltam segue muito mais confortável quando pode fechar seu foco sobre o corpo de sua protagonista a absorver o mundo. É um filme que se resolve todo nestes pequenos momentos. Esta é tanto sua grande qualidade como seu limite claro: abre-se para o mundo, mas nem sempre se sabe o que fazer com ele.

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