Depois de Tudo, de João Araujo (Brasil, 2015)

setembro 1, 2016 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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Torpor venenoso
por Andrea Ormond

Assistir a um filme como Depois de Tudo, de João Araujo, pode provocar duas reações no espectador. A primeira de aflição: lamúrias aos borbotões surgindo, e à surrada pergunta de “por que não realizamos algo parecido com Segredo dos Seus Olhos?”, ou qualquer outra ideia de etnocentrismo invertido que habite o utópico, o umbrático infantil do circunstante. A segunda reação, menos óbvia, de progressivo envolvimento. Cinema ruim é brincadeira perigosa. Depois de meia hora, vai que começamos a gostar. Como em um cigarro mata-rato, o torpor do veneno substitui a angústia. O desagrado transmuta-se em vício descoberto.

Lembro quando testemunhei, em uma sala vazia do Shopping Frei Caneca, o inacreditável Sem Fio (2009), de Tiaraju Aronovich. Com dez minutos de injúrias sobre a má sorte de ser adicta por cinema brasileiro, me calei. E passei intimamente a gostar do que via na tela. Mergulhei meu raciocínio crítico em paralaxe: acreditando não suportar nem mais um segundo daquilo, foi que terminei envolvida.

Abro um parêntese. O cinema é um lugar seguro e confortável onde podemos morar. Morar e morar, eternamente. Em sua eterna simulação de realidades, em seu eterno sonho, ele nos provoca uma oceânica sensação de paz, de bem-estar, de acolhimento. Minha visão do paraíso é morrer e ser recebida em uma sala de cinema, onde haverá uma poltrona na última fileira. Lá vou sentar e infinitas sessões passarão diante dos meus olhos. Dramas, comédias, policiais. Nunca mais ser interrompida em minha apreciação solitária. Nunca mais sentir aquele triste abandono, ao ser despejada em uma calçada barulhenta, depois de uma sessão prazerosa. Habitar para todo o sempre um cinema, como parte espectadora, é o regalo que desejo para meu espírito após a morte.

Ah, não vivi uma vida inteira enfurnada em cinemas sinistros de São Paulo e do Rio, buscando sessões desertas em recônditos misteriosos, para me afrontar por tão pouco! Assim como venci – e aprovei – Sem Fio, haverei de suportar muitas narrativas terríveis, ao curso de uma existência devotada à cinefilia. Em Depois de Tudo precisamos da atenção redobrada e o filme nos fará feliz. Não é o gozo estético que provoca um Rossetti ou um John Coltrane, por exemplo. É o prazer masoquista, quase humilhante, de se ver na presença do infame e seduzida por ele.

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“Vou parar de ler, Andrea está biruta”, deve estar pensando o leitor. Mas aí eu conto a vocês que o abacaxi, baseado na peça No Retrovisor, de Marcelo Rubens Paiva, é sobre o amor nunca resolvido de dois amigos de infância, e a trilha sonora é “Soldados”, da Legião Urbana. Não só trilha sonora, a canção também é uma espécie de mote da história. O seu ápice, o seu desfecho. A covardia é tanta que um dos personagens ficou rico, enquanto outro é funcionário público (funcionários públicos são a Geni da nação). Digladiam pelo amor de uma mulher. Aliás, reencontram-se após zilhões de anos justamente porque a mulher está no hospital entre a vida e a morte. Passam a fita inteirinha, hora e meia, em uma interminável DR. Até a catarse final, ao som de… “Soldados”.

Não importa que eu, por estar biruta, já contei quase tudo. Você não precisa de spoilers. A burrice da trama é o spoiler de si mesma. O cara boa-pinta, Ney (Marcelo Serrado), ficou cego e virou um cantor de sucesso. O cara gordo, Marcos (Otávio Muller), é o estatutário fracassado. Entremeiam-se momentos da juventude, quando ambos eram bons da vista e mal de grana, donos de um bar. Até que o gordo jovem (César Cardadeiro) arruma uma namorada. E o magro (Romulo Estrela) fica de olho nela. Gordinhos, claro, são cornos em potencial para o cinema de folhetim. Algo na linha de Nelson Rodrigues, para quem todo marido traído precisava imperiosamente se chamar Gusmão.

Otávio Muller, desde que dava expediente na Revista Tomorrow em Vale Tudo (1988) é bom ator, e seu esforço para salvar o personagem é o que começa a nos enfeitiçar. Gostamos de Marcos, coitado. Ele bebe em uma festa e tenta beijar uma atriz apetitosa. Vejam que interessante contraponto: a imagem da derrota atropelando os caprichos da beleza feminina. Dentro daquele homem disforme, cabisbaixo, um coração juvenil ainda pulsava. Reencontrar o amigo atiça nele um combo de pesares e anseios varridos para debaixo do tapete. Explora-se ao máximo a questão de que amizades são construídas sobre alicerces de pequenas mágoas. Na falta de sutilezas existe, além das pequenas mágoas, tesão mútuo. Amam-se e precisam da mulherzinha ingênua no meio.

“Eu, você, a vadia, todos doentes, ninguém presta”, já pontificava um rap de O Invasor (2002). Bem-vindo ao pesadelo da realidade, playboy. O pesadelo da realidade em Depois de Tudo nunca se enfurna totalmente, pois há o medo de viver. Prisioneiro das coisas que amou, Marcos não deixa o mundo e o sol entrarem. Não se permite rupturas, apenas a modorra. Agarrados nessa tênue linha de esperança, levamos a curiosidade adiante. “O que o rotundo Marcos vai fazer com aquele amigo rico e invisual, com a própria vida?”, perguntamos. Mas, notem, mesmo este pequeno interesse ameaça ser quebrado, quando Ney confessa ao outro: “Eu já transei com homem!”. Até minha avó sabia que dois marmanjos, quando ensejam esses papos brabos, têm alguma treta mal resolvida.

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A fama e a fortuna de Ney são outro aspecto ginasiano. Ou humorístico. Em Até Que a Sorte Nos Separe (2012) parecia que o cinema brasileiro havia aprendido direitinho a retratar nouveaux riches. Depois de Tudo caminha três passos para trás e voltamos a uma representação visual digna dos tempos da Boca do Lixo. A riqueza é estereotipada e provoca risos involuntários. Melhor dizendo, a riqueza ri do espectador, subestima sua inteligência. Ainda bem que existe Otávio Muller tabelando com Otávio Muller. Marcos é um trickster que trapaceia aquele tom farfalhudo por onde Marcelo Serrado acredita que está cômodo. E, no final das contas, o crescente interesse que o filme engendra é proporcional à sua circulação pelas cenas. Quando entra em campo o Marcos púbere, já apontando um charme bear, concluímos que a idade, no geral, melhora muito o ser humano.

Talvez a peça de Marcelo Rubens Paiva funcione melhor ao lidar com tantos ganchos expostos e perturbações vazias (estou sendo otimista). A transposição para o cinema resultou em uma frouxidão só. Se é para cairmos no etnocentrismo invertido, outro dia revi Con Alma y Vida (1970), do cineasta argentino David Kohon. É história análoga a Depois de Tudo: um amigo que aporrinha outro, com uma mulher no meio e um final catártico. Longe de querer complexos exercícios de cinema comparado, sugiro aos leitores que assistam a um em seguida do outro. Ficará nítido como grandes artistas se expressam e um bando de medíocres se debate.

 

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