De Pernas para o Ar 2, de Roberto Santucci (Brasil, 2012)

março 11, 2013 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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A profissionalização da felicidade
por Andrea Ormond

Começamos pelo final: muito provavelmente existirá um De Pernas Para o Ar 3. Os créditos do volume 2 deixam clara a continuação da saga. E, portanto, na noite de estréia, um furacão cruzará os céus, rajadas nucleares, suicídios e a volta do messias estarão juntos, em um gigantesco cataclisma. No entanto, quando as falsas premonições se esgotarem, a vida terá continuado exatamente na mesma. Esta é a realidade do cinema popular. Boa parte dele vira fogo fátuo, atende ao público e cria rivalidades extramuros – na crítica e em alguns espectadores que não o toleram.

De Pernas Para o Ar lucra obviamente com o instantâneo das gentes da Barra da Tijuca: o areal sem prédios, fotografado em Brasil Ano 2000 (1969), de Walter Lima Jr, e que há duas décadas consolidou-se como a tal “Miami brasileira”. Bairro carioca repleto de correntes de ouro, jogadores de futebol, donos de padarias e uma classe média que almeja ser cosmopolita, mas não se conversa, e surge provinciana no raio-X. Percebam, vocês do futuro, quando cheirarem o arquivo morto do século XXI, que ao invés de dândis como João do Rio, a alma daquelas ruas ficou impregnada de uma “profissionalização” da felicidade. Confiram na lista, os pontos principais: Fulana casou-se. Fulana teve filho. Fulana tem um emprego. Fulana mede os bigodes pela inveja kleiniana da mulher do próximo. Fulana precisa do corpo sarado. Fulana está cercada da pasmaceira médica, do medo da morte que, afinal de contas, é a única coisa que poderia colocar seus pés na realidade. Fulana quer a idealização do real, a felicidade eterna. E imagina que a conquistou no 171 das supersônicas amizades forçadas e no roteiro da cinzíssima vida (que se vende como colorida).

Alice (Ingrid Guimarães) é a fulana. Estivesse nos anos 1960, tosaria o cabelo à joãozinho e cantaria loas ao carcará. Se comesse mariscadas no Beco da Fome, vestiria um shortinho e estrelaria as comédias da vez. Como está na macroestrutura de 2013, Alice de De Pernas para o Ar 2 mora em uma casa sem livros. Nada mais aterrador do que uma casa sem livros. Há de se suspeitar de uma casa sem livros. Pior, elas existem. “Caem macio e reanimam”, como as propagandas do conhaque matreiro. A falta de formação humanista, porém, será compensada por spas, grande número de contatos na Internet e uma viagem a Nova Iorque. Sim, uma viagem a Nova Iorque, ilustrando os quesitos acima na formação de personalidades. E se a viagem for acompanhada de um “negócio a ser fechado” em Nova Iorque, teremos a rendição, o orgasmo do sujeito pós-moderno!

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Nova Iorque, além disso, guardará outro significado oculto. Alice, a dona dos sex shops, vende-se enquanto produto, enquanto marca, relações públicas de si mesma. Distante de seu aquário natal (o provincianismo higienista), termina por descobrir-se vulnerável. Não sabe falar inglês suficientemente bem, o casamento balança, nada é o que parecia ser. Nova Iorque demonstra que a rainha da falsa Miami está nua. Não se capitalizou o quanto deveria. Capitalizar-se, aqui, aludindo ao sentido da batidíssima máxima de que mais vale uma boa agenda, um bom networking, do que propriamente cem mil dólares no banco e a solidão de telefones que não tocam.

Ao contrário de Muita Calma Nessa Hora (2010) e Totalmente Inocentes (2012), De Pernas Para o Ar 2 consegue fazer rir. Tem as suas tiradas e avança, ora vejam, satisfazendo enquanto comédia de costumes. Passem a famigerada placa “Sorria, você está na Barra” (agora, “Barra Olímpica” – a cretinice é uma janela aberta pro infinito) e se deparem com milhares de Alices ou wannabes de Alice – estas últimas me parecem o público-alvo. Nesse sentido, perdoem o arroubo pseudomarxista, a franquia de De Pernas Pro Ar parece totalmente didática. Filmes que propagam os valores de uma ilusão classista, de um way of life a ser almejado. Nada mal para quem gosta de acusar o cinema brasileiro de não se entender com a plateia. Não só se entende, como educa os sonhos. Os sonhos são superficiais, ridículos? Ok, concordo. Mas lembrem do camelô que traçava madames nas bagunças de Carlo Mossy. Das mulatas – a mulata, antiga instituição nacional, desapareceu – que eram disputadas nas mesas de sinuca, copos de cerveja, até em mansões grã-finas. Alice, ora-pro-nobis, é filha bastarda da banana mecânica, do Carlos Imperial que em algum ponto da vida mudou-se de Copacabana para a Zona Oeste. Alice é a pin-up contemporânea, que come ao invés de ser comida. Tem uma piroca enorme, assusta o marido e a qualquer homem – homem: espécie em extinção.

Não à toa, o consorte de Alice lembra um sábio de butique, zerado na testosterona e cheio dos mais doces conselhos. Nem quente, nem frio. Muito pelo contrário, água morna. João perdoa, serve de pajem para a endiabrada mulher. É assim que se dobra de joelhos, oferece flores, vira o escada perfeito para os pulos da heroína. Aos olhos femininos, ele pode até ser a perfeição na tela. Só não pode é existir na “vida real”, já que a tese do macho viril no cavalo branco ainda rende horrores. Não vimos no volume 1 e nem no volume 2, mas Alice (e todas as moças que a encaram como líder da raça) deve ter mostrado a foto do príncipe-esposo no álbum da cerimônia de casamento. Logo ao lado das tias diabéticas, das coroinhas de vestido estropiado e dos parentes sórdidos, vibrando na função social de “agora esposa”. De Pernas Pro Ar vende o tal peixe da emancipação feminina, mas bem de soslaio. A questão é dar conta de tantas falsas aparências, não refletir sobre elas e tratar, adiante, da continuação desse comboio, repleto de ícones e acting outs narcisistas. O velho cinema popular brasileiro absolvia o sexo, libertava a sacanagem; o novo, entenda-se, é uma espécie de chancela, de catarse para vidas fúteis e histéricas.

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