Cobertura da semana de cinema brasileiro no Maloca Dragão, no Cinema do Dragão, em Fortaleza

maio 5, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

Branco Sai, Preto Fica (2014), Adirley Queirós

Branco Sai, Preto Fica (2014), Adirley Queirós

O desejo de pertencer
por Filipe Furtado

Como parte do Maloca Dragão, evento que comemorava os quinze anos do Centro Cultural Dragão do Mar em Fortaleza, o Cinema do Dragão realizou uma Semana do Cinema Brasileiro fazendo um inventário de parte da produção recente do nosso cinema de viés mais autoral, além de prestar homenagens a Eduardo Coutinho (que teve seus recentes Sobreviventes da Galileia e A Família de Elizabeth Teixeira exibidos) e a José Wilker (com uma apresentação de uma cópia em película de Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues, em parceria com os cariocas do Cachaça Cinema Clube). Tratou-se de uma boa oportunidade para tirar pulso desta produção, entre outros motivos por a seleção de filmes conseguir ser bastante representativa, sem tentar necessariamente buscar os melhores filmes.

É difícil dissociar olhar, aqui do contexto das exibições, já que, ao contrário de festivais de cinema nos quais os eventos extra-cinema existem à parte e às margens, estamos em meio de uma semana cultural na qual a mostra de cinema é somente uma pequena parte e está inserida dentro do espaço do Dragão do Mar, acontecendo em meio à muvuca, com palcos de show, teatro e eventos diversos disputando o mesmo espaço. A muito simpática sala 2 do Cinema do Dragão (com uma das melhores projeções em DCP que me lembro num evento do tipo) acabava por vezes deslocada e um tanto esvaziada em meio à balburdia, exceto pela noite de abertura, com a primeira exibição brasileira de Praia do Futuro do Karim Aïnouz. Menos que configurar algum tipo de recusa aos filmes – inclusive, havia belas filas para Hoje Eu Quero Ficar Sozinho na sala 1 – do que um ofuscamento em meio a tantas outras opções, não deixa de ser curioso vivenciar tão literalmente este momento no qual o cinema brasileiro se perde em meio a outras tantas ofertas culturais.

A seleção se destacava justamente pela forma com a qual os filmes se encaixavam em dois espaços paralelos, mas muito distintos. De um lado, havia os filmes que estrearam em grandes festivais internacionais, como Berlim e Toronto (Praia do Futuro e O Labo Atrás da Porta, este último exibido somente após o meu retorno); do outro, aqueles que tiveram as primeiras exibições em eventos locais voltados para a produção mais independente, como a Mostra de Tiradentes e a Janela de Cinema de Recife (Os Dias com Ele; A Vizinhança do Tigre; Uma Passagem para Mário; Branco Sai, Preto Fica, A Mulher que Amou o Vento). Entre eles, há uma proximidade de um desejo, o de existir dentro do espaço do cinema de festival contemporâneo, mas também uma distância grande nas formas de realização (tanto de produção quanto estéticas mesmo). Filmes unidos pela mesma ansiedade, mas distanciados pela técnica.

Um momento revelador se deu já na segunda noite, durante o debate após a exibição de Uma Passagem para Mário, filme no qual o cineasta Eric Laurence empreende uma viagem até o deserto do Atacama via Bolívia, em memória de um amigo falecido com quem ele originalmente pretendia fazer a viagem. O cineasta revelou que, após a morte do amigo, quando se convenceu de que era preciso dar sequência ao filme, fez-se necessário pensar em um novo dispositivo para um filme só com a memória de Mário. Esta necessidade de pensar o drama a partir da moldura do dispositivo, porém, é o que Uma Passagem para Mário tem de pior, e que não deixa de ser muito característico desta ansiedade de se encaixar em moldes bem testados. Haverá momentos fortes dispersos ao longo do filme, sobretudo nos vídeos caseiros que Mário rodara para o projeto inicial e que ajudam o espectador a compreender porque o amigo com doença terminal, mas cheio de vida, parecia um personagem tão atrativo para Laurence. A viagem que dá corpo ao filme é marcada pela incerteza dividida entre o formato de filme-diário e as imagens muito bem compostas do diretor, que teimam em sabotar o drama de superação da morte que o filme deseja criar. A despeito da força do personagem-título, Uma Passagem para Mário termina aprisionado pelo próprio dispositivo. Precisa honrar não só Mário, mas também um ideal de cinema, e termina se fragilizando no processo.

Uma Passagem para Mário (2013), de Eric Laurence

Uma Passagem para Mário (2013), de Eric Laurence

Filmes de menor orçamento, como Uma Passagem para Mário, revelam um interesse constante pelos exercícios de auto-ficção (de forma mais indireta em A Mulher que Amou o Vento, de Ana Moravi), tendência frequente no nosso cinema na última meia década, mas que ganha contornos mais discursivos tanto em Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós, como em Os Dias com Ele, de Maria Clara Escobar, filmes no qual a auto-ficção como potência dramatúrgica e política é menos um recurso do que um um de seus temas centrais do filme. Em contraste, por exemplo, há um filme como A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa, no qual a auto ficção é somente um veículo para uma aproximação com o universo dos seus personagens, reproduzindo um jogo bem comum entre os nossos filmes híbridos de usá-la como filtro para tentar lidar com a representação do Outro, com resultados diversos. A cumplicidade de Affonso Uchoa com alguns personagens extrai momentos muito fortes, mas o filme sofre com certa amplidão de recorte que lhe mantém muito irregular e tateante. Os Dias com Ele é, neste sentido, um passo à frente, colocando a própria ideia em crise. Essa desconfiança lhe faz bem, e não é acidente que, de todos os filmes que flertam com a auto-ficção na programação, aquele que parte do universo mais insular é o que encontra uma maior riqueza de drama e situações.

Branco Sai, Preto Fica e Praia do Futuro eram, sem dúvidas, os filmes que levantavam maiores expectativas na seleção, por conta dos trabalhos anteriores de Adirley Queirós e Karim Aïnouz. São ambos filmes irregulares, cujas semelhanças e diferenças são bastante representativas, e que demonstram serem muito conscientes do espaço que ocupam e da obra pregressa de seus realizadores. Branco Sai, Preto Fica se propõe como uma expansão de A Cidade é uma Só?, assim como reafirma ideias e universo do filme anterior, enquanto a viagem a Berlim de Praia do Futuro é tanto uma progressão natural como um desvio muito bem pensado na trajetória de Karim Aïnouz. Os dois filmes reforçam a ideia do autor que desenvolve a obra como para a uma marca, e esta impressão de cálculo é por vezes seu limite – algo mais forte em Branco Sai, Preto Fica que jamais alcança o mesmo frescor de A Cidade é uma Só?

Se algo os distancia, é justamente a forma com que se relacionam com ideias e conceitos em voga. Praia do Futuro dá mais um passo no processo de dissolver a individualidade de Karim Aïnouz dentro de um formato de filme de festival, a cada dia mais distante de Madame Satã (2002) ou Seams (1993). Branco Sai, Preto Fica, por outro lado, flerta com muitos conceitos, mas os utiliza para dar sequência ao universo muito particular de Queirós. Se o filme por vezes sugere o risco de um desgaste em longo prazo – muito dos movimentos de sucesso de A Cidade é uma Só? são repetidos aqui com menos força –, assim como seu trabalho anterior se destaca justamente por fechar seu foco sobre o local, seu cinema responde primeiramente a inquietações da sua Ceilândia, e questões de cinema brotam naturalmente a partir dali. Se, num filme como Uma Passagem para Mário, o que deveria ser o centro do filme – o amigo morto – termina subserviente a uma ideia pronta de cinema, nos filmes de Adirley Queirós tal processo seria impossível. Embora seja evidente ser um filme mais pensado e calculado que seu trabalho anterior, ainda assim ele é capaz de conservar um frescor próprio. Branco Sai, Preto Fica termina por se revelar uma obra menos forte que A Cidade é uma Só? porque, enquanto o filme anterior lançava mão da fabulação como peça de resistência política, aqui estamos diante de um filme sobre fabulação como resistência política, e o movimento nestes termos registra com menos força.

Praia do Futuro (2014), Karim Aïnouz

Praia do Futuro (2014), Karim Aïnouz

Em Praia do Futuro, o movimento é oposto. O que o filme tem de melhor, mas ao mesmo tempo de mais sintomático, é seu movimento de Fortaleza até Berlim. Este deslocamento para a cidade alemã tira o cinema de Aïnouz da acomodação crescente na qual se encontrava, e obriga-o a repensar seu cinema para outro espaço que, se conta com pontos de contato com os locais marginais que filmara no Brasil, também existem em uma chave e significados diferentes. O segundo bloco do filme, com a chegada do personagem de Wagner Moura a Alemanha, é o entrecho mais forte de um filme de Aïnouz na última década, mais fluente e dramaturgicamente exato do que seus filmes recentes. Se filmes como Branco Sai, Preto Fica e A Vizinhança do Tigre podem por vezes parecer bem tateantes, Praia do Futuro é tão à vontade com sua forma que por vezes se assemelha um produto muito bem embalado.

O movimento rumo a Alemanha traz com ele este desejo de boa parte do cinema brasileiro recente de desaparecer dentro da produção do cinema mundial. Assume-se o espaço, a língua, os significantes. A Alemanha é, para o filme, um espaço de deslocamento, mas também de afirmação: pode-se finalmente se afirmar pelo que deseja ser. Seu movimento final é justamente o de fazer as pazes com uma recusa e com sua nova posição de brasileiro-estrangeiro.

O logo da The Match Factory na abertura de Praia do Futuro é sua maior vitória. O sucesso do filme está intimamente ligado ao quanto ele se revela só mais um. Em meio a suas virtudes, o que se destaca é como sua personalidade vai aos poucos se aniquilando em função do “filme de festival” como gênero. Se na maior parte dos outros filmes exibidos ao longo da semana esta é uma negociação complicada e mal resolvida, marcada pela ansiedade de tomar parte de um panorama e o conflito com a tentativa de fazer valer um projeto particular, aqui ela se dá sem culpa. Seu movimento final é exatamente o de afirmar sua posição confortável na Europa, e apaziguar o ressentimento do irmão caçula abandonado. O desejo, exposto em todos outros os filmes, de ser abraçado por este mercado de cinema contemporâneo se completa. Resta decidir se o processo vale a pena.

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