Cine Holliúdy, de Halder Gomes (Brasil, 2012)

setembro 2, 2013 em Cinema brasileiro, Do Arquivo, Em Cartaz, Paulo Santos Lima

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* Originalmente publicado em Novembro de 2012.

Causa perdida
por Paulo Santos Lima

O Brasil tem uma rejeição histórica ao popular, disse Sheila Schwartzman. A observação, citada em mesa da 6a Mostra de Cinema de Ouro Preto, expõe uma dificuldade prática do nosso cinema em reproduzir um repertório mais genuíno e que tenha mais a ver com o Brasil. Sem muito contato com esse específico de nossa cultura, as raras experiências que encontraram algo do nosso imaginário coletivo são verdadeiros trevos de quatro folhas: a chanchada dos 1950, o Candeias de As Rosas da Estrada (1981), as comédias de costume dos anos 1970, os filmes d’Os Trapalhões, o encontro de Nelson Pereira dos Santos com Milionário e José Rico em Na Estrada da Vida (1980) e alguns outros poucos. Na omissão do cinema, a TV assumiu a escrita do nosso inventário, e fez do popular uma marca – o que, na prática, é o popularesco, com seu repertório pronto para a edificação da mass exploitation: as telenovelas, os programas de auditório e afins, padrões tão eficientes que, na seca desértica, são exportados para o cinema nas comédias e melodramas tipo Globo Filmes. Ainda mal aferido em 2012, o popular (esse item ainda tão proibido) tornou-se um mito – ou, pior, um valor. Tapete Vermelho, de 2005, é um bom exemplo: em vez de retomar a experiência material (estética) do popular genuíno de Amácio Mazzaropi, o diretor Luiz Alberto Pereira buscou o lugar possível que o cinema brasileiro dos anos 2000 indica, o de um “cinema autoral de qualidade”, e trouxe alguns temas “do momento”, como a questão do MST, para ensaiar uma suposta homenagem. (Re)visto à distância e em desconhecimento, Mazzaropi tornou-se, ali, uma marca.

Posto isso, chegamos ao filme de Halder Gomes, Cine Holliúdy, cuja adoção de um repertório “popular” (com aspas) vem por uma contingência, e não para se franquear numa marca. Na história de Francisgleydisson (Edmilson Filho), o herói idealista que abre uma sala de cinema numa pequena cidade no interior do Ceará, nos anos 1970, para manter barricada contra a inefável chegada da televisão, está manifestada a defesa que filme e diretor fazem do cinema – ou, mais precisamente, de um certo cinema como experiência coletiva e catártica que teve sua melhor expressão nas saudosas matinês. A causa de Cine Holliúdy será um ideal quase messiânico, porque aspirando algo tanto (ultra)passado quanto infactível: infelizmente, aquele cinema como lugar de adesão e culto convive hoje com o grande chacal da profusão de outras plataformas audiovisuais, como TV, YouTube, Facebook, acesso a dispositivos de captação, videogames e outros espaços de interatividade.

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Ao militar por essa experiência coletiva ancorada no repertório das matinês, o longa de Halder Gomes só pode buscar no repertório popular um meio de consumação de um discurso que parece bastante incoerente em 2012. O popular será, portanto, um ideal, um mito, uma aspiração, inclusive porque a estética adotada em Cine Holliúdy confirmará sua impossibilidade. Ironicamente, o momento histórico tornará coerentes as escolhas feitas por Halder, que tecerá um humor típico dos programas de auditório, calcado em trocadilhos falados por personagens arquetípicos de almanaque, como a esposa do prefeito, o malandro que não quer pagar para assistir ao filme, a mocinha fogosa irritada com o namorado que não desgruda o olho do filme de kung-fu, etc.

Esse imaginário, que era das chanchadas e das sessões pipocas dos anos 1940 e 1950, foi apropriado e mitigado pela TV, que por sua vez é, hoje, o grande meio de imantação coletiva popular, ainda que não num mesmo espaço em comum. Por mais fiel e sólido que esse tal “repertório popular” possa chegar à tela, haverá o buraco negro da televisão para puxar pra si a referência imediata. Inclusive porque a (falta de) mise en scène seguirá, inexplicavelmente, a quadradice televisiva. É bem estranho que um filme que defende a sobrevivência do cinema não consiga construir imagens fortes que colem no imaginário coletivo – como colaram e colam as imagens de Hawks, Ford, Welles, Rossellini, Kiarostami, Visconti, Godard e Coppola, etc. É mais estranho ainda (e revelador) que o mais forte momento deste Cine Holliúdy seja quando o projetor enguiça e Francisgleydisson encenará, “in loco”, como num teatro de variedades ou circo, a continuação do filme de artes marciais com o qual a platéia da cidade se extasiava. Aliás, é dessa sequência, vista aqui na imagem acima, que há uma única sacada visual de cinema: o protagonista salta no meio da sala e seu vulto “enquadra-se” na tela, num feliz gesto conceitual de Halder Gomes.

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Desde quando passou no Cine Ceará, Cine Holliúdy conquistou simpatia de alguns jornalistas e críticos, como se singeleza fosse, necessariamente, uma sabedoria cinematográfica. Seria um fetichismo sobre a pureza do popular, como os europeus quando viram os índios? É só retomar Mazzaropi e perceber o equívoco: ali, ele expunha um olhar ingênuo e jeca sobre o mundo para assim esbofetear a intelligentsia cosmopolita, trazendo o genuíno popular à tela na sua própria representação de um típico popular. Incomodando a convenção, a ingenuidade torna-se um ensinamento, um estar no mundo, nos mostrou Mazzaropi na melhor ilustração do que seria sabedoria popular. Mas se a causa e a forma com a qual Cine Holliúdy defende essa causa revelam ingenuidade e equívoco, a paixão e fé, ou cinefilia, que levaram Halder Gomes a dirigir um filme merecem respeito. Neste já mencionado ceticismo atual, um filme feito por um idealista (cinéfilo) já é, pelo menos, interessante.

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