Chevalier, de Athina Rachel Tsangari (Grécia, 2015)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

*Cobertura do IndieLisboa 2016

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“O barco foi para a nossa civilização, do século XVI aos nossos dias,
não apenas o maior instrumento de desenvolvimento econômico,
mas a maior reserva de imaginação.
O navio é a heterotopia por excelência.”

Michel Foucault, Des Espaces Autres

De reservas e represas

Se comparado com seu longa anterior, o novo filme de Athina Rachel Tsangari produz uma estranha imagem em que convivem continuidade e oposição radical. Enquanto Attenberg! era ambicioso a ponto de se transformar em um filme sobre nada menos que “o ocaso do Ocidente” – como escreveu Fábio Andrade –, Chevalier é igualmente grandiloquente, e se impõe desde o primeiro plano como um estudo sobre a masculinidade, cujo laboratório é uma viagem entre amigos a bordo de um iate de luxo e a estapafúrdia competição estabelecida por eles para determinar quem é o “melhor homem em geral”. Por outro lado, se o filme anterior era uma ficção proliferante, na qual o drama familiar abraçava a performance, o antinaturalismo, as artes visuais, o ensaísmo e um enorme etcétera, Chevalier aposta na concentração: o elenco integralmente masculino se digladia farsescamente em uma comédia de câmara, que se passa quase inteiramente dentro de um barco.

No final de sua conferência sobre as heterotopias, Foucault reservava um lugar muito especial para a figura do barco, esse “pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que se fecha sobre si e ao mesmo tempo se lança ao infinito do mar”. Em Chevalier, o barco é, ao mesmo tempo, um lugar de exceção – longe da terra, é possível se entregar não apenas à amizade prenhe de homoafetividade, mas ao insólito de uma gincana – e um microcosmo, que concentra múltiplas possibilidades de comunicação imaginária com a história (em particular, com a história do cinema). O filme se contamina por toda uma imagerie das relações amicais e das disputas entre homens, que vai desde o western hawksiano até os bromances sob a influência de Judd Apatow, passando pelos filmes de ação e pelos coming of age oitentistas.

O olhar de Tsangari é simultaneamente próximo dos personagens – há uma afeição patente por cada um desses homens de meia-idade – e distanciado em relação ao repertório de imagens que media inevitavelmente nossa relação com o mundo encenado pelo filme. Por um lado, poucas vezes a masculinidade teve seus aspectos francamente risíveis tão ressaltados: as querelas nessa fraternidade de homens ricos e bem-sucedidos frequentemente adquirem um aspecto de briga infantil, um incômodo se torna birra, uma demonstração de virilidade se torna… bem, uma demonstração de virilidade, com todo o imenso ridículo que lhe é intrínseco. Por outro, a pregnância das paixões salta aos olhos, no bojo de uma mise-en-scène capaz de transformar uma dublagem de Lovin’you de Minnie Riperton em uma performance a uma só vez plenamente caricaturesca e inelutavelmente amável.

É como se Chevalier aplicasse a todo um conjunto de gêneros identificados com a masculinidade um filtro irônico, ao mesmo tempo em que sustenta a crença na variação dos afetos no interior dessa comunidade provisória. Do mesmo modo, há uma miríade de leituras alegóricas possíveis no plano da dramaturgia – a começar pelo autoencarceramento de uma elite grega que parece passar ao largo das convulsões políticas recentes no país –, mas há também um investimento na densidade da experiência lúdica desses atores, uma crença na integridade de suas fabulações. Nesse ínterim, há uma série de achados cômicos notáveis, como a cena em que um dos competidores dorme inacreditavelmente ereto, imóvel e silencioso e os outros, caderninho na mão, avaliam como é possível um sono tão perfeito; ou as sequências em que os funcionários do barco, transformados em espectadores críticos, fazem um bolão quanto ao resultado da gincana.

Ao fim e ao cabo, no entanto, Chevalier resulta em um filme bastante previsível e controlado, sobretudo se consideradas as altas promessas de liberdade lançadas por Attenberg!. A comédia, embora funcione razoavelmente bem enquanto tal, acaba por se transformar em um arcabouço que parece conter o fluxo das contaminações possíveis. Ao se manter de bom grado a salvo dentro dos limites da ficção empática, Chevalier se torna refém de seu próprio exercício de desconstrução. O barco – essa imensa “reserva de imaginação”, no dizer de Foucault – revela também sua dimensão de espaço fechado, capaz de represar o furor imaginativo do cinema de Tsangari.

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