ATTENBERG!, de Athina Rachel Tsangari (Grécia, 2010)

março 11, 2013 em Em Vista, Fábio Andrade

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O ocaso do Ocidente
por Fábio Andrade

ATTENBERG!, segundo longa-metragem de Athina Rachel Tsangari, começa com uma parede branca, de tinta levemente puída pela passagem do tempo. Poucos segundos depois, duas garotas entram em quadro – uma de cada lado, como em um western em plano por demais aproximado – e se entregam ao que pode ser o mais desajeitado e agressivo beijo da história do cinema. O limite entre o beijo – entrecortado por algumas poucas palavras de incentivo – e um verdadeiro gesto de violência se atenua cada vez que uma língua força adentrar uma boca que não lhe pertence. Subitamente, elas se afastam, perdendo o contato, e começam a cuspir uma na outra. Com a escalada de cuspe no limite da tensão que o plano consegue sustentar (ou até não restar mais saliva), vem o primeiro corte do filme, e a metamorfose daquele beijo se completa indo do plano médio para o geral: com um empurrão, ambas caem sobre as quatro patas e passam a agir feito animais, rosnando, uivando, trocando unhadas em um jogo de dominação que não parece cabível entre duas melhores amigas, e que não permite um esboço sequer de plano/contraplano. As duas saem de quadro e voltamos a ficar a sós com a parede branca que descasca, e que em nada lembra as idílicas paredes brancas espalhadas pelos guias de turismo que vendem pacotes nas ilhas gregas.

É, sem dúvida, um começo de filme bastante singular, ainda mais se levarmos em conta a beleza bruta, mas inegável, que emana da estranheza daqueles primeiros minutos de projeção. Parte dos elementos centrais de ATTENBERG! – a saber, uma corruptela para o documentarista Sir David Attenborough, mundialmente famoso por seus programas de TV em que estuda a vida dos animais selvagens, que a protagonista assiste compulsivamente ao longo do filme – são logo apresentados neste primeiro prólogo. Mas, em nome da clareza, convém avançar uns planos mais: a montagem corta para um sprinkler que rega um gramado de maneira espalhafatosamente controlada, criando desenhos com os finos jatos de água. Na metade do plano, a canção “Ghost Rider” – clássico do Suicide, primeira banda a adotar o termo “punk”, com sua depuração do rockabilly e da música sintetizada em um minimalismo rítmico e melódico de incrível potência – invade a cena, perdurando por uma de montagem de planos gerais dos dejetos de um mundo: uma igreja; uma quadra de tênis; uma fábrica; um prédio feio com varanda cercada; um hotel que parece um amontoado de caixas;… um hospital. “Sou o Ocidente e isto é tudo que restou”, grita a paisagem, com a autoridade dos espaços que testemunharam a invenção de uma civilização. ATTENBERG! talvez seja seu mais justo requiém.

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Voltamos aos corpos, pois ATTENBERG! é um filme da decadência e nada imprime a decadência como os corpos. Marina (Ariane Labed), uma das garotas do plano de abertura, diz ao pai que nunca sentiu desejo. Ela tenta aprender a beijar com a amiga mais experiente, mas seu corpo jovem – 23 anos, diz a personagem, mas parece mais –  carrega uma vida que não foi possível, soterrada pelo peso civilizatório da cidade industrial em desmonte onde vive. Seu pai, Spyros (Vangelis Mourikis), com a virilidade intelectual de outras épocas, ainda abala os hormônios de Bella (Evangelina Randou), a única amiga de Marina… mas já é tarde e a doença come, aos poucos, cada célula de seu corpo. Em dado momento do filme, ele faz a auto-crítica de seu trabalho como arquiteto (“os arquitetos vão todos pro inferno, você dizia”, lembra Marina) e constata, com a clareza que só chega com a proximidade da morte, o absurdo do sonho Modernista que construiu um pátio industrial cheio de caixotes brancos sobre uma cidade rural que sequer tinha sido industrializada. Próximo ao final do filme, quando não há mais forças para andar e Marina precisa empurrar a cadeira de rodas do pai em um passeio pelos corredores do hospital onde ele definha, ele diz tudo que há pra ser dito: “Estou boicotando o século XX. Ele é superestimado e eu não sinto qualquer tristeza por ter de deixá-lo. Sou um velho ateu, um dejeto tóxico do Modernismo, do pós-Iluminismo, e te deixo nas mãos de um novo século sem ter te ensinado coisa alguma”.

ATTENBERG! sente pelo pai, mas seu protagonista é Marina. É ela quem abrirá sobre o colo um mostruário de caixões “mais modernos”, como afirma o vendedor, “carvalho, cerejeira, pinho ou mogno”, para selar o destino inevitável. É, portanto, um filme sobre a geração que “não foi ensinada coisa alguma”, que sonha ir a Plutão, explorar um outro planeta, quando Plutão já não é mais sequer um planeta. É um filme que fala do presente em confronto com uma História já fracassada, mas ainda em curso. O drama, porém, é sempre privilégio dos sobreviventes.

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“Basicamente, você é comido por vermes. Eles começam pelos olhos, que são mais macios (…). No final, sobra só o esqueleto”, diz Spyros, ao ventilar o plano de ser cremado, mesmo morando em um país que até 2011 não tinha crematórios. A sensação é que ATTENBERG! começa após o banquete dos vermes, em uma cidade que apenas parece um dia ter sido uma cidade, habitada por uma arquitetura que não se parece com arquitetura… é um filme do que sobrou, do esqueleto do gesto. E se é, também, um filme do desejo, ou da ausência dele, há versos possíveis neste esqueleto. O corpo humano – esse pássaro de asas cortadas – é reprimido como animal, mas represado como dança, desembocando nas silenciosas e levemente dessincronizadas coreografias que pontuam toda a duração do filme. Mas mesmo a dança, aqui, parece não ter possibilidade de se construir plenamente, de ser dança de fato, ficando na região cinzenta em que a pré-dança se encontra com a pós-dança. Ela é apenas a possibilidade de se viver fisicamente quando não há desejo, de poder se relacionar com outro corpo sem as entranhas de um beijo. De se reservar, diante de toda e qualquer situação, o direito de um comentário.

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Há, nesses breves e frequentes interlúdios musicais (mas, claro: um musical sem música e sem dança, de fato) que costuram todo o filme, um comentário sobre o presente. A geração de Marina – a rigor, a nossa geração – vive o ocaso de um projeto que deu errado e tateia em busca de proposições possíveis, de erros verdadeiramente novos. O ocaso, porém, não é o fim, mas o devir do fim – um fim ainda em curso, a ação da morte em um corpo vivo. Nesse sentido, ATTENBERG! guarda os ouvidos para momentos em que a música serve como projeto possível de mundo: a onipresença das canções do Suicide, tão parecidas com o velho rock americano quanto com os sons abafados da tomografia que mapeia a morte se espalhando pelo corpo de Spyros; e os restos de uma canção de Françoise Hardy – a jovem-ícone francesa que misturava a chanson com o pop anglo-saxão, em chicletes que, milagrosamente, parecem conservar o gosto até hoje – reduzida ao som de um contrabaixo elétrico desligado ou a um canto que tende à capella, em dueto de Marina com sua instrutora de beijos, em uma caminhada pela rua onde vadiam os rapazes da cidade. São momentos de extraordinária beleza, em que a frieza do filme – igualmente bela – cede espaço, enfim, a alguma pulsação, algum desejo de pegar do chão esses restos de civilização e fazer algo com ela. “Be Bop Kid” ao leito de morte do pai – que seja, desde que seja vivo.

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Diante dessa terra desolada, não é apenas pontual a lembrança de que o cinema e a arte contemporânea vêm se ocupando enormemente do binômio construção/ruína há algumas décadas, reverberando ou ocasionando (é sempre difícil saber onde começa um e termina outro) a presença do fim. É algo que aparece desde as fotografias dos altofornos de Bernd e Hilla Becher, até um filme como Os Residentes, de Tiago Machado, ou mesmo na música de um James Blake, em seu movimento circular de atração-repulsa pelas convenções da composição tradicional anglo-saxã (as “canções de pub”, como dizem por aí, de maneira frequentemente derrogatória). Uma vez detectada a onipresença do ocaso, a questão se torna outra: qual é atitude do artista diante dele?

Instalando seus enquadramentos perfeitamente desequilibrados em uma zona limítrofe e pouco explorada entre o cinema e as artes visuais, a performance e a dança, a canção e o silêncio, o homem e o animal, o cortejo sexual e o cortejo fúnebre, Athina Rachel Tsangari consegue, em um filme tão apaixonantemente irregular, uma pequena proeza: transformar a Grécia – justo a Grécia! – em um espaço a ser ainda inventado. Isso não significa esquecer ou ignorar o passado, mas justamente trabalhar algo novo a partir de seus restos. Recentemente, em uma palestra no Rio de Janeiro, o artista Nuno Ramos definia em palavras um pensamento que, mal sabe ele, se faz sensível aqui: enxergar “a ruína como uma espécie de second chance”. E, no cinema, isso só se faz possível com uma câmera que, fincada ao lado da urna com as cinzas do pai que serão entornadas na água, não esconde que balança com os movimentos do mar.

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