Boa Sorte, de Carolina Jabor (Brasil, 2014)

julho 31, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

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Ajustamento de conduta
por Marcelo Miranda (colaboração especial)

Se são sobretudo as primeiras imagens “que determinam o regime de ficção e de crença próprio de cada filme e de cada gênero”, como escreveram Jacques Aumont e Michel Marie, os primeiros planos de Boa Sorte localizam devidamente o espectador no espaço, tempo e contexto a serem acompanhados na próxima hora e meia. A maior importância dessas primeiras imagens, porém, está no tom. Uma série de perguntas que a médica vivida por Cássia Kiss faz a João, interpretado por João Pedro Zappa, é filmada e montada em campo e contracampo. Toda a cena é marcada por cortes rápidos, pelos quais se alcançam efeitos de informação (compreende-se que João está num hospital psiquiátrico por algum comportamento fora dos padrões e toma remédios de tarja preta) e de humor (a expressão dos atores a cada corte, a entonação de voz e o ritmo com que se dão as perguntas e respostas tem um quê de propositadamente desajeitado). Quando o filme enfim sai da sala de consulta e adentra a clínica onde se passa a maior parte da ação, falta apenas a entrada de Judite (Deborah Secco) para se fixar de vez o que Boa Sorte vai tratar e como fará isso. Em princípio não há nada de novo ou problemático nessa apresentação de situações e personagens. A questão vai se complicando quando se percebe que todo o filme vai se pautar por esse tipo de construção nos caminhos mais simplificados de estética e narrativa. Visualmente, Boa Sorte segue o padrão da produtora Conspiração Filmes, buscando atingir uma noção de “belo” para se encaixar dentro de certas exigências intrínsecas ao mercado, mesmo que se trate, neste caso, de um filme sobre perturbados e perturbações potencialmente incômodos.

Algumas pessoas podem eventualmente vincular o primeiro longa de ficção de Carolina Jabor a Bicho de Sete Cabeças (2001), de Laís Bodanzky, mas a comparação não se sustenta por quase nenhum caminho. Se Bodanzky fez abertamente um filme-denúncia, tendo como ponto de partida os dramas pessoais do jovem Neto (Rodrigo Santoro), Jabor está muito mais vinculada aos sentimentos afetivos que serão criados ente João e Judite e as maneiras como eles devem se virar para viver um amor que tem dia certo para acabar (ela é HIV positiva e não pode tomar o coquetel anti-Aids por problemas hepáticos). A opção do filme acaba por ser a de dar a estes dois jovens, tão apaixonados quanto considerados párias sociais, o maior dos confortos estéticos num filme que faz de tudo para não confrontá-los. Se o espectador lida desde o início com a consciência de que a relação amorosa não tem futuro, que o filme então ajude a compensar a infelicidade iminente do casal; se dentro da tela a eles não é mais permitido viver intensamente nem extravasar o desejo de liberdade que os domina, tenta-se que fora do filme, sob a visão do público, eles sejam mais bem entendidos e compensados antes do destino derradeiro.

A metáfora da invisibilidade, central ao filme, representa muito bem o sentimento de piedade para com os personagens e a vontade de dar a eles a chance que ninguém dentro do filme lhes oferece. João conta a Judite que, ao tomar o remédio Frontal acompanhado de Fanta Laranja, ele consegue a capacidade de ficar invisível e fazer praticamente tudo que quiser. Na estrutura do filme, o Frontal com Fanta (nome, aliás, do conto de Jorge Furtado que originou o roteiro) funciona apenas como a materialidade da condição de invisível enfrentada por João: sem atenção dos pais, amigos e garotas, restou-lhe apelar ao uso de remédios para suprir o vazio social e afetivo. Mas, como a evidência da imagem permite perceber, João é invisível aos outros, não ao filme nem ao olhar da câmera. Quem o vê (a câmera e o espectador) pode compreender suas atitudes e constatar o quanto ele é tornado vítima de um mundo moderno e saturado de estímulos infinitos que jogam figuras sensíveis como João para o escanteio do desequilíbrio. Boa Sorte surge como um afago audiovisual em João, carinho logo ampliado para Judite. E não se maltrata a quem se quer bem. Por mais que a base do enredo seja o estado terminal de Judite, acima de tudo interessa à instância narradora que essa garota exista no que ela tenha de melhor e mais destacável, e que seu jeito espontâneo e descompromissado seja o estímulo que faltava a João.

A única coisa que desequilibra a invisibilidade de João é o toque – ele percebe, sob efeito do Frontal com Fanta, que pode circular livremente por qualquer lugar e na presença de qualquer pessoa, contanto que ele não encoste em ninguém. Ele acaba internado depois de lamber uma garota no banheiro e esmurrar uma mulher no supermercado. As ações “proibidas” de João se ampliam para o filme em si: o contato físico existe, mas na chave da limpidez, da “beleza”, da luz refletida nos corpos. Quaisquer menções a contatos verdadeiramente mais aprofundados serão rechaçadas – e a reação de Judite à tentativa de João de transar sem camisinha com ela, embora travestida de preocupação e proteção com a saúde dele, convém ao medo que o filme demonstra de lidar com a pele, o suor, o fluido, o gozo.

O plano-sequência em que o casal e um terceiro interno na clínica andam, pulam e dançam pelos corredores é sintoma do olhar complacente àqueles personagens e o temor do choque verdadeiro entre os corpos: se a libertação pelo movimento da câmera permite o respiro das imagens, aos corpos não é dada a mesa chance, pois não há risco de trombada ou tropeço. O movimento é tão fluido quanto perfeito, a música está fora da diegese (ou seja, vem do relato, não do extracampo) e a epifania será suficiente para apresentar aquele momento sem que ele se propague para além de si mesmo. A cena serve mais ao “ajustamento de conduta” que sustenta o arco narrativo de João desde o início do filme. Porque sua estada na clínica, a relação com Judite, a busca pelo passado familiar da moça, tudo são degraus para que o rapaz efetivamente se enquadre num meio social que o rejeitara e enfim possa sair do hospital, estudar, se formar, trabalhar, casar-se, ter filhos… Seguir, afinal, aquilo que o Frontal com Fanta havia desviado e que a experiência com Judite (e especialmente a perda dela) colaboraram para voltar aos eixos. Diz muito sobre as escolhas do filme que essa personagem tão caracterizada como impetuosa, intensa e fora da curva seja aquela que encaminha João a uma vida e um cotidiano completamente inversos a tudo isso.

A maior (única?) possibilidade de potência de Boa Sorte acaba por ser sabotada: após conseguir afastar João, Judite é vista deitada, num plano distanciado que, em fusão, desaparece aos poucos para dar lugar ao mesmo enquadramento, porém sem a moça nem as roupas de cama. Judite se foi numa elipse elegante de linguagem, e dali adiante o filme (e não só João) precisa aprender a conviver consigo mesmo sem sua presença. Eis, porém, que um flashback resgata Judite, agora moribunda, e dá ao espectador a coda relativa à da elipse anterior. Nada, então, pode ficar esburacado: Judite precisa ter seu suspiro final testemunhado pelo espectador, precisa receber o afago derradeiro, que vem num plongée frontal, acima da cama, num olhar superior que se despede da personagem. Ela precisa, enfim, abrir passagem para o conservador ajustamento de João.

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