Being Boring, de Lucas Ferraço Nassif (Brasil, 2015)

fevereiro 9, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

* Cobertura da 19a Mostra de Tiradentes

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Comportamentos
por Raul Arthuso

Este texto foi concebido na pista de dança, em pé, diante da tela de cinema. O apontamento é importante pois Being Boring, de Lucas Ferraço Nassif, não apenas é um filme peculiar dentro do panorama brasileiro atual, como a experiência da sessão é – ou foi – de vital importância para sua fruição. Sua exibição em Tiradentes virou uma grande festa, onde o público foi convidado a dançar num espaço reservado que acabou subvertido, fazendo com que o reservado à tela chegasse a ser invadido em determinado momento, numa interação pouco provável e que lhe deu outro sentido.

Isso porque Being Boring traz uma situação bem definida de início: uma garota, num apartamento de classe média carioca, dança para um rapaz ao som do disco Behavior, do duo inglês Pet Shop Boys, cuja primeira música é o sucesso “Being Boring”, que empresta o título ao filme. A garota parece interagir com o rapaz, como a seduzi-lo, ao mesmo tempo em que ele resiste a se levantar e dançar. E só: a dimensão de jogo entre a dança e a resistência, o corpo lânguido num movimento ao mesmo sensual e hipnotizado pela música frente ao corpo imóvel e consciente de si formam o fio condutor do filme de Nassif. Há uma frágil linha narrativa nessa interação dos dois corpos, num fiapo de suspense tensionado pelo tempo do filme, marcado na reprodução do disco ao longo da projeção. Pela passagem das músicas, é possível apreender o tempo decorrido do filme, o que torna sua fruição uma troca entre a obra do Pet Shop Boys e a imagem na tela.

As cenas no apartamento são entrecortadas com outros três materiais. O primeiro é uma espécie de making of de um espetáculo de videoarte, misturando uma estrutura de projeção com espelhos, onde é possível identificar uma montagem lado a lado de Viagem à Itália (1954), de Rossellini, com o clipe de “Being Boring”, dirigido por Bruce Weber. O segundo é um plano fixo de uma mesa de controle de som, aparentemente o espaço de trabalho de um profissional de música eletrônica, mas em sua residência, marcando essa dupla natureza do gênero: tecnológico em seus aspectos estéticos, mas caseiro em sua fatura. Aparecem também páginas de um livro de arte (a palavra “helenic” salta aos olhos), com diversas esculturas clássicas, não detendo-se sobre nenhuma em específico: das páginas da história da arte clássica, retém-se apenas o clima geral e não seus significados mais detalhados. Assim, esses quatro “registros” filmados, com suas respectivas situações, e a música criam uma narratividade repousada sobre estruturas de repetição e variação dos elementos de cena: a luz do abajur ao lado da mesa de som, o espelho na estrutura de projeções, o ritmo das páginas passando na tela, a posição dos corpos no apartamento, a dimensão dos olhares. Mais que isso, esses registros criam um clima (elemento central na música eletrônica) em que clássico – a escultura helênica, Rosselini – e contemporâneo – Pet Shop Boys, instalação, videoclipe – estão tensionados pela sobreposição que o filme estabelece como ponto de partida.

Being Boring ganha, então, um lugar particular no cinema brasileiro recente por ter essa estrutura exposta. Interessa, em primeira instância, criar formas e não narrativas. Esses poucos elementos concretos delimitam seu caráter de remix entre o filmado e o sonoro, cuja pesquisa está nas pequenas partes internas dessa interação. A tensão de olhares e corpos entre a garota e o rapaz existe no suspense de que o filme avance para além da situação inicial, algo que não acontecerá, assim como o disco não vai trocar e o espetáculo de vídeo que vemos se formar nunca chegará à completude que promete, pois feitos de pedaços, fragmentos, aparações que o remix do filme será incapaz de reconstituir. Being Boring é abertamente um quase-filme.

Em seu comentário sobre o filme na cobertura da Semana dos Realizadores, Filipe Furtado fala em uma “abertura warholiana”. Mas Being Boring está longe do transe warholiano. Em Warhol, o tempo é uma experiência diante do visível. Por mais que o Empire State Building possa permanecer imóvel, a passagem do tempo da cena coincidindo com o tempo do filme traz para o plano uma série de pequenas alterações – da paisagem, das luzes, da própria instabilidade da película fotossensível -, criando um mundo em lenta transformação onde aquele que vê se transforma de fato num espectador. Sua atividade é estar atento a essas transformações (que ganham status cósmico). As coisas acontecem. Já aqui há um sentido de interdição: a situação é travada de partida e as mudanças nos paradigmas criados pelo próprio filme parecem uma impossibilidade. Sua visualidade é uma pré-figuração de uma situação que se ameaça, mas nunca acontece de fato. Being Boring é uma experiência de não-acontecimento: o disco riscado, o espetáculo em processo de montagem, a dança que nunca virá.

Os créditos iniciais entregam algumas regras do jogo e creditam três pessoas como personagens que dançam. Isso é curioso, pois nas cenas do apartamento, os movimentos da garota são acompanhados por uma câmera que performa junto com ela e, assim como a garota, recebe olhares do rapaz. A rigor, apenas a garota e a câmera dançam, sendo a cartela dos créditos uma pista falsa para o espectador. Então, o olhar para câmera, além de criar uma interação consciente com essa “terceira personagem”, reforça a suspensão da ação: a garota vai continuar dançando, o rapaz vai apenas olhar sentado, a câmera vai tentar criar novas imagens capazes de sustentar essa situação e captar a interação alongada das duas personagens visíveis, em uma eterna ameaça de se concretizar como narrativa. A performance da câmera é o espaço de intuição dentro de uma forma que insiste na persistência: ela anda pelo espaço, coloca-se atrás de objetos, dança com a garota, aproxima-se do rapaz, foge da cena, filma luzes, armários, bibelôs. Percebe-se o quanto, dentro de um espaço delimitado pela situação que não muda e da música que marca a passagem do filme, a câmera tensiona essa estrutura, ameaçando romper o sistema. Em sua mobilidade interna, acaba por reforçar a imobilidade geral: o que a câmera mostra é, nesse sentido, menos importante do que o fato de estar mostrando. Esse gesto é o sentido geral do filme, pois menos que significar, as obras de arte clássica, a instalação, o videoclipe de “Being Boring” e Viagem à Itália aparecem como elementos visíveis cuja presença é forte demais para o próprio filme sustentar.

Being Boring tende, assim, muito pouco à música do Pet Shop Boys, em seu caráter finalizado, tampouco à escultura helênica, em sua materialização mimética do ideal humanístico greco-romano na eternidade da pedra, ou a Rossellini, no diálogo conflituoso de Viagem à Itália com o que restou do classicismo cultural do Ocidente; de fato, o filme está mais próximo das fotografias das esculturas impressas no livro, um objeto difuso formado por pedaços que nos remetem às obras, uma aparição, um assombro, cuja experiência se transforma a partir do modo como será usado. Apesar de tomar emprestado o título da canção, não é um filme sobre os Pet Shop Boys ou sobre a canção título, nem um tributo; não é uma instalação artística nem um filme experimental. Por outro lado, traz de forma difusa Pet Shop Boys, Michelangelo, a video-instalação, Rossellini, o cinema estruturalista, mas seu significado só alcança o verdadeiro sentido na sessão: o filme pode ser um tour de force com a platéia ou uma balada, a depender da situação.

O resultado da sessão em Tiradentes é um acontecimento interessante, uma sessão única, na medida em que trata-se de um filme que se modula na situação da exibição. Pois Being Boring não é um filme para dançar – eu diria inclusive que é um filme sobre o rapaz que não dança, mais do que sobre a garota – muito menos é um filme para se ver, apenas. Como diz a sinopse (apresentada também em cartela nos créditos iniciais), tirada de uma canção fúnebre de Sufjan Stevens, “pra que cantar canções se nunca nem vão te ouvir?”. Existe uma desesperança no filme, traduzida em sua forma de quase-filme, teimando em se impôr enquanto obra acabada, colocando a impossibilidade de concretização plena como única possibilidade de lidar com música, arte e performance (e, talvez, o mundo). Quando o público interage, forçando à obra uma plenitude (no caso da sessão de Tiradentes, como uma balada inexistente no filme: o apartamento onde a garota e o rapaz estão parece mais um fim de festa ou um esquenta deveras caído), essa fragilidade vira força: Being Boring foi esse filme – com torcida para que o rapaz dançasse, curtição da música e questionamentos sobre as imagens das esculturas renascentistas – quando a plateia o tomou de assalto para si nesta sessão. E só nela.

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