Bashar, de Diogo Faggiano (Brasil, 2014)

fevereiro 18, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

bashar

Fantasmagoria e vertigem
por Francis Vogner dos Reis (colaboração especial)

Bashar, de Diogo Faggiano, é um filme ativista antes de querer ser um filme militante. Sua ação é no olho do furacão, não no cumprimento de uma específica agenda política (que se relacionaria nitidamente com um ideário que imprimiria sentido à luta que visaria a transformação social), ainda que, por sua intervenção, responda a predicados políticos objetivos. É nesse aspecto que, no filme, se torna importante o papel didático exercido pelo entrevistado, o ativista Rami Jarah, que é uma espécie de comentador dentro do filme, e que nos introduz em um espectro mais amplo do conflito. O filme não encampa com furor o discurso dos rebeldes que seria, justa e supostamente, esse contra-discurso de resistência à ideologia assombrada da televisão, aqui vista a partir da imagem saturada do presidente da Síria Bashar Al-Assad em entrevista à FOX News – que é, como se sabe, antro e celeiro do “tea party” republicano  da TV norte-americana. Bashar, o filme, não cumpre uma agenda militante que partiria de uma verdade de base segundo o princípio e o desejo da militância midiática atual: trazer à luz a verdade velada pela ideologia, expor o “núcleo duro” da realidade, encontrar a imagem-problema que desestabilize as imagens oficiais geridas pela grande mídia.

A primeira imagem é uma subjetiva de alguém que filma o próprio pé na esteira de um aeroporto ao som de uma música eletrônica egípcia. Durante o filme, a câmera subjetiva (o olho e a presença desse personagem invisível) possui um papel importante, porque tem acesso ao interior do grupo dos rebeldes e ao trajeto deles em meios aos escombros da guerra civil. Adrenalina pura. É a chegada ao aeroporto (um olhar que se instala em uma realidade estrangeira) e a guerra vista por dentro. Sem os pudores do distanciamento, o filme tem a ambição de conhecer internamente um processo de insurreição, algo alheio à grande mídia que se preocupa com fatos, sejam eles os atos violentos ou acontecimentos derivados do jogo político. Não temos aqui a figura do “repórter de guerra”, que traduziria os fatos para o espectador não informado, por exemplo, mas o amadorismo de uma câmera que documenta o provisório e a vertigem do conflito na Síria, uma câmera que busca um pathos narrativo. As imagens são feitas por um midiativista. Para ele, reproduzir uma experiência seria tão – ou mais – importante quanto replicar uma informação. Para o midiativismo, o trabalho não é só amparado nas ideias, mas, sobretudo, na ação política que se faz nas ruas, ombro a ombro. Reproduzir essa experiência da rua faz com que o espectador que porventura venha a assistir qualquer vídeo ou transmissão ativista tenha um sentimento político ativo, não a impotência passiva, tal como já foi apontado nas críticas da mídia nos anos 1970 e 1980. É esse sentimento – essa vertigem – de ação que forja em Bashar uma imagem que seja alternativa aos esquematismos da grande mídia.

Essa adrenalina é bem distinta de um distanciamento reflexivo do cinema moderno que teve na guerra o ponto de inflexão fundamental. Existe reflexão na ação a partir da experiência limite, ainda que a busca por reproduzir uma experiência e o contato com este mundo e essa circunstância sobrepujem uma reflexão mais detida sobre a guerra e suas implicações, ou mesmo sobre o “lugar” e a interatividade desse espectador. O filme trata de imagens e de como essas imagens são instrumento de uma guerra e ao mesmo tempo são as provas vivas das suas contradições. Trata-se de um exame de como a ideologia joga com a verdade e a mentira. Ideologia: palavra velha e, para alguns gostos, de um démodé paranoico, mas que tem nas imagens sua máscara e também seu desmascaramento..

O que é intrigante no filme é menos seu ímpeto em ser uma peça de engajamento efetivo na sua questão (a guerra civil na Síria) e mais em impor – como tensão, construção e sintoma – a vertigem da atualidade em que o fluxo, o desdobramento e o empenamento de imagens nos dão a ver e a saber sobre uma determinada circunstância dessa guerra em uma complexidade que é desconcertante no detalhe, não na sua abrangência.

Aqui, a ideia de imagem inédita – a imagem desestabilizadora que revelaria a ideologia – não existe, ainda que existam sim imagens inéditas (realizadas no seio da ação dos rebeldes por uma câmera operada por um terceiro, não por alguém da equipe do filme), mas que por si só não constituem ou não constituiriam verdade. Não há imagem-síntese, nem imagem-tese, mas existem imagens de variadas naturezas que possuem, no seu interior, articulações particulares que colocam em crise o que se visa em primeira instância (a “mensagem”), como se vê nos vídeos realizados junto aos rebeldes ou em imagens surrupiadas da televisão que, deslocadas e volatizadas, se mostram como pura fantasmagoria

Desde a primeira entrevista (falsa) em que um repórter entrevista um cidadão com um discurso pró-Síria que, enquanto fala, é enrabado por um homem com máscara de macaco, é inevitável que toda entrevista – ou fala – durante o filme soe um pouco como “farsa”, ainda que não o seja. Efeito estranho e eficiente, ainda que não tenha sido desejado: seja nas imagens da grande mídia ou naquelas realizadas junto aos ativistas e rebeldes, sobressai o modo como esses discursos são empenhados pelos seus personagens: a persuasão autoritária na truculência protocolar do presidente Bashar; o púlpito dos fundamentalistas cheio de sentenças e axiomas como “Deus é Grande”; a fala correta de Rami Jarah que lida mais com exemplos abrangentes do que fatos concretos e os rebeldes a meio fio da democracia e do fundamentalismo islâmico. Existe sempre, em cada imagem e fala (que se propõe como uma leitura da “realidade”), a sombra de sua contradição.

O filme é permeado pelo discurso, em entrevista, de Bashar Al-Assad, coisa de uma serenidade burocrática e de um automatismo retórico convincente e persuasivo, porque aparentemente impermeável às contradições e categórico na resposta aos fatos (“o que não for o desejo do povo não tem como ser pacífico”). Trata-se de uma máquina ideológica que, se olhada na sua fluência e na estética de sua narrativa, testemunha uma performance de tal modo ambígua em que se mistura a verdade com a mentira (“a estratégia do diabo”, como fala a tradição cristã). Blinda-se a realidade e exercita-se a persuasão do interlocutor (seja o jornalista, peça da cena, ou o público, receptor), importante para gerar credulidade. A imagem da entrevista está saturada e levemente desenquadrada, como que filmada diretamente de um televisor, o que faz a distinção da imagem da televisão das outras imagens do filme, que são as imagens realizadas por ativistas junto aos rebeldes. O rosto de Bashar aparece pela metade, o que reforça, inclusive, sua dimensão fantasmática.

Há outros discursos que, mesmo tendo a adesão do filme, também são ambíguos, menos por motivo da performance em si (porque não há o personalismo como no caso da fala de Bashar, apesar de haver o esforço performático significativo), e mais nas articulações internas dessas imagens. Uma delas, talvez a mais desconcertante, é a entrevista de Abu Furat um militar desertor do exército sírio que luta contra Bashar. O depoimento dele é de perplexidade ante as mortes causadas pela guerra, pelo contrassenso de um exército que mata seu próprio povo: “juro que me perturba ver alguém morrer, seja do lado deles ou do nosso. Você (Bashar) começou a matar as pessoas quando elas eram pacíficas. Nós não somos terroristas, você quer que sejamos terroristas”. Furat (que morreria dois dias depois dessa entrevista) está cercado de rebeldes e é interrompido por um deles que grita “vamos chegar com homens que amam a morte tanto quanto vocês amam a vida”. O constrangimento de Furat, militar laico, é patente. Na resistência a Bashar se misturam rebeldes laicos e fundamentalistas. É uma constatação trágica. Lutar pela vida ao lado daqueles que amam a morte é o paradoxo fundamental.

No filme de Faggiano, não há um diagnóstico totalizante, não se solicita o definitivo, não se faz panfleto de crítica às mídias. Mas Bashar também não incorre na esquiva e na omissão. Tudo pelo negativo, para afirmar o seguinte: em situação excepcional de conflito em que as imagens são, em sua multiplicidade, artífices de um discurso oficial, mas também registro de uma situação de guerra (situação limite), veículo de potência limitada dos rebeldes e ainda púlpito dos fundamentalistas, é preciso fazer os distanciamentos e as aproximações necessárias. É nesse entre imagens que se pode expressar o horror e as contradições nesse conflito em Aleppo, porque é aí que se apresentam as reminiscências de uma experiência – pessoal, local, coletiva, midiática, histórica – que se faz imagem.

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