Aproximações e surpresas: um olhar sobre a mostra Novos Olhares

setembro 1, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

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Dans ma tête um point rond (2016), Hassen Farhani

* Cobertura do 5o Olhar de Cinema

por Eduardo Valente (colaboração especial)

Não chega a ser surpreendente que os sete longas exibidos na mostra Novos Olhares (título que não se refere necessariamente a propostas estéticas inovadoras, mas sim ao fato de serem todos filmes de estreia de seus realizadores na duração do longa metragem), dentro do festival Olhar de Cinema, em Curitiba, tivessem como ponto em comum algum tipo de tensionamento da chamada “linguagem documental”, seja pelas frestas que aproximam essa da ficção, seja pelo campo das “artes visuais”, seja simplesmente por remeter à eterna pergunta: mas documentar o quê? Dizemos que não chega a ser surpreendente tanto por essa ser uma das principais pautas que têm se repetido nas discussões em uma série de festivais pelo mundo (inclusive pela multiplicidade de possibilidades que traz para mesa), mas também quando conhecemos o currículo e os interesses do curador dessa seção do festival, o cineasta e curador Gustavo Beck – que tanto nos seus filmes como nos festivais para o qual tem trabalhado sempre se aproximou com bastante inquietação dessas questões.

Dos sete longas exibidos, curiosamente os dois que se aproximam de maneira mais direta com a ideia de “documentar” tinham a mesma empresa produtora por detrás, a portuguesa Terratreme. Em ambos os casos, tratam-se de coproduções, sendo uma delas (Ama-San) com o Japão (país onde o filme é totalmente rodado), e a outra (Talvez Deserto Talvez Universo) com o Brasil (nesse caso, o filme é filmado em Portugal, mas os diretores são um casal formado por um português e uma brasileira – Miguel Seabra Lopes e Karen Akerman). No caso de Ama-San, o ponto de partida é o mais tradicional possível: a descoberta de um “assunto” (no caso, um trabalho inusitado realizado no Japão apenas por mulheres – uma pesca submarina de mariscos e crustáceos, sem o uso de equipamentos de respiração embaixo d´água), que atrai uma realizadora a uma realidade totalmente distinta da sua, para buscar pela linguagem do cinema suprir sua curiosidade sobre aquela comunidade. O filme que resulta desse impulso sem dúvida consegue entregar parte do que o tornava fascinante para sua realizadora – no caso, permitir um desvelar de uma “realidade inesperada”, tanto em termos de imagens surpreendentes quanto de uma série de dimensões complexas da rede de relações em torno daquela ocupação. Nesse sentido, é um filme ao qual se assiste com um sentido de curiosidade inegável. No entanto, o fato de que nada ali seja exatamente tão forte quanto as imagens subaquáticas dos mergulhos (inclusive as únicas imagens não filmadas diretamente pela diretora Cláudia Varejão) nos faz perceber que algo na sua maneira “observacional” de se colocar em cena não satisfaz plenamente o desejo de imersão (sem trocadilho) naquele local, ao lado das personagens.

Talvez Deserto Talvez Universo não deixa de ter algo similar na origem, uma mesma vontade de mergulho (de novo, sem trocadilho) numa comunidade “fechada” com regras bastante particulares – aqui, literalmente fechada, pois trata-se de uma instituição psiquiátrica para criminosos considerados inimputáveis por seus atos. No entanto, o jogo que se estabelece entre câmera e personagens se torna mais complexo e perturbador – e isso apenas em parte pela natureza mesma daqueles homens em frente à câmera, todos perceptivelmente instáveis e, muitas vezes, derrubados por uso de medicamentos pesados e pela imposição daquela rotina cruel. O filme abandona qualquer ideia de uma busca pela “beleza” estética no contato com seu universo – algo bastante adequado como escolha frente ao que se apresenta –preferindo apostar na sua capacidade de, se não reproduzir, ao menos buscar se aproximar, na experiência do espectador, da noção de “tempo” conforme ele transcorre naquele espaço particular. O filme consegue tornar seus personagens mais pregnantes para quem assiste (e o fato de o realizador que opera a câmera falar a mesma língua deles certamente ajuda – em oposição ao filme realizado no Japão), mas por outro lado ele sofre do peso da memória dos tantos filmes realizados em instituições similares ao longo da história do documentário, alguns dos quais clássicos incontestáveis. Por mais únicas que sejam cada uma das pessoas em cena (e no mundo), há algo do impacto que se dilui por conta dessa história audiovisual partilhada.

Algo dessa história pregressa também é o que torna menos siderante a experiência de assistir-se a Zud, um dos dois filmes da mostra que misturam de forma mais clara os registros de ficção com o documental. Esta coprodução Polônia/Alemanha, da diretora Marta Minorowicz, vai se instalar nas áreas isoladas das estepes da Mongólia para acompanhar uma família (e em especial, um pai e o filho mais velho, em vias da passagem da infância para a adolescência) enfrentando a conjunção de dificuldades econômicas com a dura realidade natural que os cerca. Como se vê, há aqui, de novo e como em Ama-San, certo fascínio pelo distante, pelo exótico – e, como se poderia esperar, disso resultam algumas imagens fortes. No entanto, trata-se de novo de um espaço já trilhado por uma série de filmes (nesse caso, alguns bem recentes, como Tulpan), o que parece elevar a nossa busca por um diferencial específico mais firme, que aqui nunca chega a acontecer. A montagem em especial parece bastante confusa entre seus caminhos dramáticos e os de seu teor mais “observacional”, resultando num ritmo bastante irregular que não parece funcionar a favor do engajamento com o universo.

O outro filme que lida diretamente com esse entrecruzamento ficção/documentário é o egípcio Akher Ayam El Madina (In the Last Days of the City, no título internacional), filmado no Cairo entre 2009 e 2010. Aqui, acompanhamos a narrativa de um cineasta que, ao mesmo tempo em que tenta montar e finalizar um filme sobre o qual se sente cada vez menos capaz de entender o que quer significar, vivencia esse momento tenso e igualmente confuso na vida do seu país. O filme incorpora, através do encontro do personagem com colegas de profissão vindos do Líbano, Síria e Iraque, uma visão mais ampla do sentimento de desterro – e de incontrolável corrosão do tecido social e geográfico à sua volta. No entanto, a topicalidade desses temas, assim como da realização do filme naquele espaço-tempo cujo simples registro (não apenas como imagens e sons, mas como sentimento de mundo) já resulta tão potente não consegue se sobrepor totalmente ao fato de que tudo no filme que é da ordem da ficção (seja como construtora dos personagens, seja como encenação) seja tão menos interessante ou firme do que essa condição sócio-histórica da realização. Longe de ser um filme sem força, mas o cotejo de registros, que poderia ser uma delas, acaba não conseguindo realmente atingir plenamente seus objetivos.

Num certo sentido, é algo que acontece também com Frammento 53, um dos dois filmes da mostra que se aproximam do documentário pelo viés do ensaio e das artes visuais. Nele, os diretores italianos Federico Lodoli e Carlo Gabriele Tribbioli vão até a Libéria e registram em entrevistas bastante frontais as palavras (duras e frias) de sete ex-combatentes na sangrentíssima guerra civil que devastou aquele país por cerca de 20 anos entre o fim dos anos 1980 e o começo dos 2000. Esse registro é o coração do filme, com tudo de problemático que possa emergir dele (um sentimento de uma África negra tornada indistinta e desindividualizada pela monstruosidade da violência naturalizada). No entanto, na opção que os cineastas tomam de abrir seu filme com uma espécie de ensaio (visual e discursivo) sobre a dimensão filosófica da guerra, assim como na sua maneira de aludir à sua própria forma na divisão em capítulos e filmar o entorno das entrevistas, o filme parece terminar fazendo desse coração algo menos capaz de se sustentar por si mesmo – o que é bastante incongruente, para dizer o mínimo, com aquele material em si. Filosofar sobre o horror, afinal, não é nada impossível, mas quando você tem a câmera e o microfone para registrá-lo, parece ao menos dispensável.

Ainda assim, o filme inegavelmente constrói sequências e gera sentimentos bastante fortes e que ficam com quem o assiste, o que é bem mais do que se pode dizer de Geographies, da realizadora libanesa Chaghig Arzoumanian. As intenções do filme são as mais claras possíveis: partir da história da diretora e de sua família para dialogar com todo um contexto histórico de um povo (no caso, os armênios, tornados exilados pela perseguição étnica), mesclando tanto nas suas imagens como na sua hiperpresente narração em off as dimensões da fábula, do registro e do narrar. Acontece que esse é um programa por demais cristalino do filme, e mesmo com todo seu sentimento tão pessoal de realização, sua característica tão preconcebida e controlada resulta distante, repetitiva e, o que não é simples dado o caráter tão mítico e duro de sua narrativa, um tanto banal como objeto audiovisual. Geographies parece um filme por demais autoconsciente do seu interesse prévio assegurado, seja pela importância daquilo que registra como narrativa da história de um povo, seja pela sua subjetividade plena no processo de realização. Esse sentimento de “jogo ganho sem nem precisar ser jogado”, porém, é justamente o que o faz perder sua aposta.

Isso ajuda a entender, inclusive, porque, dos sete filmes da competição, o que mais interessou ao júri do qual fiz parte tenha sido o franco-argelino Dans ma tête um point rond: durante boa parte de sua duração, senão mesmo até o seu final, é difícil antever exatamente as intenções por trás de seu gesto original de partir em busca de documentar algo – e, por consequência, as formas e construções pelas quais as buscará completar. Se esse texto propôs, ainda que de forma um tanto redutora (como terminam sendo todas as categorizações ou aproximações entre objetos artísticos individuais), a separação dos outros seis filmes da mostra em três categorias (o documentar como registro, a aproximação frontal com a ficção, a forma do ensaio), talvez tenha sido para afirmar justamente a impossibilidade de conseguir conformar confortavelmente o filme de Hassen Farhani em qualquer dessas (ou outras) categorias da relação com a ideia do registro da não-ficção.

De fato, Dans ma tête… pode ser visto como um registro, como uma ficção e como um ensaio, pois incorpora de diferentes maneiras cada um desses modelos de aproximação com a imagem e com o real. No entanto, não é apenas questão de louvar algo pelo que não se satisfaça nos outros (o que, afinal, não é uma qualidade em si, pois cada filme e material pedirá sua forma), mas acima de tudo perceber a força do sentimento que consegue atingir justamente por não parecer fazer essa mescla como um programa prévio de “mix de linguagens”. Na verdade, como os mais fortes exemplares da linguagem documental, o filme de Farhani deixa emergir naturalmente cada um desses que são mais sentimentos do que exatamente formatos de registros, a cada cena. No fabular de um personagem a partir de perguntas pode surgir a ficção, mas surge também o ensaio (quando uma fala absolutamente pessoal e apaixonada adquire a força de um resumo de sentimento de mundo de uma certa juventude árabe). Na colocação de uma câmera se constrói um objeto estético sem perder a dimensão da relação humana viva entre quem filma e o que filma. E, finalmente, na opção de um recorte fixo de um espaço (aqui, um matadouro em Alger) surge a metonímia de um país e uma região, mas sem que essa figura de linguagem sufoque a força única de um lugar específico, e personagens idem. Tudo isso junto é o que dá força bastante especial a esse filme, que, sozinho (ainda que dentro de uma seleção bem interessante no todo), faz valer como as aproximações do documental, mesmo com tanto teorizar e tantos anos de história por trás, ainda permitem esses momentos de surpresa e novidade que nascem de forma inesperada.

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