À Queima Roupa, de Theresa Jessouroun (Brasil, 2014)

outubro 4, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Fabian Cantieri

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Banalidade da imagem
por Fabian Cantieri

À Queima Roupa nos encaminha solidamente ao caminho inescrutável da revolta. É um daqueles documentários em que a escolha do tema não nos permite sair incólumes da sessão; daquelas sessões em que não duvidamos que alguém se levante e esbraveje contra a tela, ou no mínimo reaja em alto e bom som a algumas imagens ou declarações pontuais. O filme é pontual no dedo na ferida: desde as manifestações de junho de 2013, um dos assuntos políticos que não sai da pauta de discussões é a reformulação da polícia brasileira. Theresa Jessouroun não entra no “como” isso deve ser feito, mas no histórico degenerativo da instituição – desde a virada democrática até hoje, a polícia é um meio corrupto, vingativo, que recorrentemente se lança em tragédias fatais. Trata-se de um filme apontador de uma desgraça que clama por mudanças, para o qual sua condição carcomida não é nem um debate, mas um princípio inegável: não existe a ponderação da polícia poder conservar sua inteireza de valores; não existe futuro idôneo, visto que o presente e o passado são provas irrefutáveis da violência constante que dali decorre.

À Queima Roupa é um filme sobre chacinas. De Vigário Geral até as execuções sob tutela da lei em 2013, passando pela chacina da baixada e do complexo do Alemão, entre outras. Numa balança entre opacidade e transparência, o traquejo do artifício cinematográfico tende a recair sob a segunda medida ao tocar assuntos tão efervescentes. Aqui, sua estrutura não deixa de seguir um certo padrão de simplicidade: as imagens de arquivo de Vigário Geral em 93 que instauram o problema puxam as entrevistas (o policial, responsável por responder à imprensa então, retoma o fio da narrativa vinte anos depois no filme) que se encadeiam com as simulações ficcionalizadas. Diante de uma estrutura rotineira quase tão codificada quanto o documentário griersoniano, especialmente proliferada pelo jornalismo televisivo, se sobressai uma plasticidade que parece querer justificar-se como diferencial, como cinema – o esmero na luz que desenha os talking heads, ou sua ausência naquele que não pode ser identificado (uma simplicidade chique, o plano clean); o encorpado grão da película que dosa um tom a mais de realidade nas simulações em favelas… tudo destoante, claro, das imagens de arquivo (ou seja, televisivas) que estamos acostumados a reconhecer quando tratam de tais assuntos.

Sabe-se que tipo específico de documentário está diante de você quando se assiste um zoom no entrevistado prestes a derrubar sua primeira lágrima. Essa é aquela máxima da etiqueta cinematográfica e também jornalística que, de tão martelada, quando acontece, revela a ânsia do autor em se mostrar urgente. Aqui, existe um meio do caminho: a câmera em um dado momento começa seu zoom, mas a montagem coíbe e corta para o plano um pouco mais próximo (não chega a ser um close evidenciando a redundância da tristeza). Esse gesto é um pouco sintomático das direções do filme de Theresa Jessouroun. Diante de um tema impregnante, de fúria em mãos, ora parece querer escancará-la – perto do fim, faz a única entrevista dupla, na qual o rapaz da barbearia que leva um tiro não fala uma frase sequer, às vezes geme, está lá pela cavidade em seu crânio, como evidência encarnada de uma calamidade, de um estado físico e espiritual sub-humano – ora parece querer deixar que as imagens falem por si só (e não há nada visualmente mais impactante no filme do que o arquivo do rapaz na maca, chegando ao hospital de cabeça estourada).

Mais complexo do que construir um arcabouço estrutural é desenvolver um fio narrativo que reverbere a potência da imagem. Nesse sentido, nada mais ambíguo, desnorteante e engrandecedor à derrocada maniqueísta do que a figura do X-9 (que causa estranhamento desde sua entrada, com sua assumida nomenclatura de X-9 nos créditos), o fio que costura a disparidade entre dois lados imiscuídos. Um promotor levanta as estatísticas de que 100% das chacinas cometidas no Brasil são feitas por policiais, mas é o X-9 quem delata que, nesses casos nos quais o crime é cometido por quem sabe se livrar facilmente das provas mais evidentes, a punição do sistema judiciário brasileiro é sustentada primariamente pelo testemunho. Das quase trinta testemunhas, o próprio é quem tem a coragem de enfrentar o pelotão de policiais de Vigário Geral praticamente sozinho. Filma-se o inimigo para o entendimento dos meandros internos da engrenagem policial, mas não só: o X-9 é o paradoxo do sistema penal: nos relata sem pesar e sem consciência pesada, apenas com a bagagem da sabedoria do mundo, que nada disso vai mudar, que o tráfico de drogas e armas continuarão a dominar as transações mundiais, que ninguém que tira uma vida merece estar solto depois de cinco, sete, onze anos (a pena máxima de trinta e três pode ser sempre reduzida drasticamente conforme bom comportamento penitenciário); ele, em condicional, sabe que não merece estar solto pelas mais de trezentas condenações que deveria ser acusado, e no entanto está, e ainda assim prendeu outros tantos, e o mundo corre.

À Queima Roupa é um filme em guerra. Um chamado à mudanças drásticas de olhar a corporação. Um movimento de fé nas evidências que não cansam de se repetir na História, como comprovação de um estado em inércia, de um movimento que precisa ser estancado. Um filme pronto por si só… só é preciso cuidado com a imagem cabal. O jornalismo é a prova do afogamento da imagem pelo cotidiano em um mergulho radical. A saída do cinema é reinventar-se. No debate do filme logo em seguida da sessão, Walter Carvalho comparava a audiência do filme com maior bilheteria da história do cinema brasileiro, Tropa de Elite 2 a um capítulo de novela. Enquanto o primeiro alcançava o olhar de onze milhões de pessoas ao longo de meses, uma novela em apenas uma hora alcança dezenas de milhões de espectadores. Continuava que esse, então, era um filme para ser visto em televisão e que filmes como esse deveriam passar em horário nobre toda semana em canal aberto. Não é difícil de concordar.

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