A Arte do Renascimento – Uma Cinebiografia de Silvio Tendler, de Noilton Nunes (Brasil, 2013)

setembro 26, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

aartedorenascimento

Ode às avessas
por Victor Guimarães

Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”.

Caetano Veloso


A Arte do Renascimento é uma biografia edificante do documentarista Silvio Tendler, se movendo entre o arquivismo didático, a historiografia capenga e o tom decididamente institucional que neutraliza qualquer tentativa de encontro entre retratista e retratado. Entre imagens aleatórias extraídas dos filmes do cineasta, breves depoimentos do protagonista – sempre destruídos por planos de cobertura banais – e entrevistas informativas com artistas e ativistas políticos, a imagem do cineasta engajado politicamente vai ganhando, aos poucos, os contornos de um personagem absolutamente previsível – estética e politicamente – e facilmente explicável em duas ou três características.

O Silvio Tendler retratado por Noilton Nunes – obviamente, não o indivíduo, mas o personagem de filme que se constrói diante de nós – é uma espécie de comentarista das mazelas do mundo sob o viés de um esquerdismo retrógrado e enrijecido, que se utiliza de três ou quatro clichês ideológicos para produzir uma enxurrada de filmes em que se muda o objeto documentado, mas não se altera o modo de documentar; um fazedor de homenagens a grandes personalidades da arte e da história política brasileiras – de Castro Alves a Glauber, de Juscelino a Marighella –, que descobre em cada uma dessas vidas-obras a que se dedica a biografar uma mesma ideia de engajamento militante, como se acumulasse exemplos de uma grande narrativa cujo final já sabemos qual é.

Nessa “cinebiografia”, nenhuma imagem, nenhum som tem existência remotamente cinematográfica. Só o que interessa é o que pode ser dito em voz over e reiterado em letras garrafais, de preferência traduzidas para o francês. O interesse do filme pelo cinema de Tendler é tamanho que a resolução das imagens de suas obras convocadas pelo filme tem o aspecto de um vídeo de baixíssima qualidade do Youtube, aumentado para uma tela de proporções cinematográficas. Essas imagens parecem estar ali (e elas são inúmeras) para cumprir a função sempiterna de um atestado de existência, na medida em que nada em sua matéria plástica ou sonora interessa ao filme. A certa altura, Tendler nos fala sobre o projeto de Utopia e Barbárie. No plano seguinte (em uma operação didática que é recorrente à exaustão), passamos a acompanhar imagens do longa de 2009. Essas imagens são os créditos iniciais do filme. Só interessa a A arte do renascimento dizer – pela enésima vez – que Utopia e Barbárie existe, que ele se chama assim, e que esse filme – que nunca saberemos que tipo de objeto estético é – foi dirigido por um homem chamado Silvio Tendler.

Dizia Glauber – ironicamente, um dos artistas retratados por Tendler em seus filmes – em “Revolução do Cinema Novo”: “Apesar de fazer cinema voltado para a realidade social, nunca admiti nenhuma forma de demagogia estética em face de uma arte política; porque o que acontece é que existem intelectuais, escritores, artistas e cineastas que justificam uma péssima qualidade da obra artística em nome da intenção política progressista. Isso é traição que não admito”. Com a única desculpa – estética e politicamente inaceitável – do propósito progressista de um filme que busca retratar a trajetória de um cineasta militante, a demagogia e o engodo de A Arte do Renascimento se expõem logo nos primeiros minutos, e continuam a reverberar a cada escolha subserviente a um padrão formal hegemônico (que não chega nem a ser imitado de forma competente, tamanho o desleixo do filme).

As frases do ator entrevistado Bruno Duarte – cujo grupo procura pensar as imagens como “rachadura no cotidiano” (ou do próprio Glauber no filme de Tendler – em sua luta por um “rompimento efetivo com a linguagem do colonizador”) – convocadas por A Arte do Renascimento soam como mais um atestado de seu fracasso. O filme de Noilton Nunes, enquanto obra cinematográfica (e é decepcionante que a seleção dos documentários em competição em um festival de cinema obrigue o crítico a escrever um aposto tão tolo como este), é um imenso desserviço à imagem do cineasta e à posteridade do cinema de Silvio Tendler. Trata-se de uma homenagem que, por sua extrema inocuidade estética, é capaz de fazer com que nutramos, por um instante, um lamentável sentimento de desgosto pelo personagem ao fim da sessão, tamanho o desprazer que o filme nos provoca. Em certo momento, Silvio nos diz que seus filmes são formadores de novos cineastas. Se a coincidência entre o personagem retratado e o indivíduo pudesse ser assumida sem mais, a imagem possível do futuro desse jovem cinema de que ele nos fala seria desoladora. Esperemos que não.  

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