Weiner, de Elyse Steinberg e Josh Kriegman (EUA, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

45o New Directors/New Films

weiner

Moscas falantes
por Elie Aufseesser (colaboração especial)

“- Calem-se – disse Ralph, distraidamente. Levantou a concha. – Acho que devemos ter um chefe para decidir as coisas.

– Um chefe! Um chefe!

– Eu devo ser o chefe – disse Jack com ingênua arrogância, – pois sou chefe do coro e solista. Posso cantar em dó sustenido”.

O Senhor das Moscas, William Golding

Jack, personagem de O Senhor das Moscas, de William Golding, é a metáfora de um líder autocrático. O protagonista, Ralph – um líder natural, eleito democraticamente – é a antítese do supracitado Jack. O clássico romance faz uma representação pessimista de uma proto-sociedade composta apenas de crianças, cada uma delas correspondendo a um tipo ou alegoria de certos componentes da fauna política. Por acidente, elas acabam em uma ilha deserta durante a guerra e passam pelo penoso processo de constituir uma comunidade funcional, com direito a líderes reconhecidos e todas as brigas e conflitos que isso gera (culminando em uma conclusão cinza e cínica).

Não sei se Anthony Weiner, personagem que dá nome ao documentário de Elyse Stenberg e Josh Kriegman, pode cantar em dó sustenido, mas ele certamente pensa que “deve ser o chefe”. Longe de mim sugerir que se trate de um autocrata: Weiner parece a encarnação perfeita e mais extrema de um ser político – um cérebro totalmente ocupado pelo desejo do poder e dos holofotes públicos, a ponto de não existir vida possível sem eles.

Weiner segue o congressista em sua campanha à prefeitura de Nova York, em 2013, pouco após um escândalo envolvendo mensagens de texto picantes ter chegado ao público, durante um turbilhão de revelações de sua vida privada. Como Ralph, ele quer ser o chefe da ilha, a mais rica e célebre de todas as ilhas. Mas desde o princípio certa dubiedade se instala na relação dos cineastas com o universo que eles escolhem retratar. Ainda no começo, após um momento apatetado em que Weiner se diz arrependido por ter aceitado ser filmado, uma pergunta se esparrama pelo ar: quem está no comando?

Políticos profissionais têm como requerimento profissional moldar uma imagem de si próprios. Hoje, mais do que nunca, a habilidade na construção imagética é imperativa à profissão para que eles sejam capazes de reverter e se beneficiar das mais espinhosas e imprevistas situações. Ao se aproximar deles com uma câmera, em especial durante um momento de campanha (espécie de temporada de acasalamento na política), certa cautela e distância tornam-se vitais. Afinal, há um jogo de sedução natural entre a câmera e todo protagonista agudamente auto-consciente. Mas como culpá-lo, uma vez que esta auto-consciência é seu próprio trabalho?

No contexto do filme, tanto mais: a sobrevivência de Weiner está particularmente ameaçada, e o personagem mostra-se disposto ao impensável para superar o período adverso. A abertura do filme é uma montagem esperta dos momentos mais significativos da trajetória de Weiner sob o prisma de diversas redes sociais, reencenando o circo onde seu mais exímio trapezista gradualmente se enforcaria. Esse desespero inclui a permissão para que a câmera de Kriegman – seu ex-chefe de gabinete – se faça quase permanentemente presente, sem que Weiner tenha plena consciência dos desdobramentos futuros dessa decisão. Aqui, realizadores e personagem se enroscam em um mesmo nó: ambos não têm idéia mais clara de onde estão se metendo, e o contrato de fé entre as partes é tudo que eles têm.

Essa confiança não tarda a ser desviada, e Kriegman e Setinberg se revelam mais fascinados com o acesso exclusivo que lhes é garantido do que com o próprio personagem ou o que ele representa. Esse sentimento fica patente nas cenas em que o filme se instala na intimidade de Weiner com sua esposa (Huma Abedin, conselheira veterana de Hillary Clinton), ou em toda a sequência que segue a sua derrota, com o jogo de gato-e-rato para evitar a imprensa que cerca seu gabinete. O problema é que em nenhum momento os cineastas dão o passo atrás requerido pela montagem: a despeito da distância temporal que poderia trazer certa prudência às paixões e uma oportunidade de repensar seus impulsos, o filme mergulha, cinicamente, em uma tina vazia.

Não é um jogo de inocentes: o filme usa seu protagonista na mesma medida em que é usado por ele. Com o desenrolar complexo dos acontecimentos, é possível perceber que Weiner vê, no filme, uma possibilidade de se redimir da culpa expiada publicamente, aos olhos da imprensa e do eleitorado. Ao perceberem isso, os diretores tentam ser mais reais que a realeza e, em suas inúmeras limitações, se defendem com o mais puro deboche.

Em um insight interessante, Weiner chega a prever que o documentário será incorporado àquele vórtice de escândalos midiáticos. Impotente diante desse buraco negro, o filme sequer tenta achar a distância necessária para se diferenciar tanto da propaganda política quanto do sensacionalismo televisivo. Não há ponto-de-vista – fulcro sensível dos grandes documentários políticos – pois não há lugar, ou sequer desejo, de se pensar a política ou o próprio cinema aqui. O que sobra é apenas a confirmação de que o documentário foi sugado não só pelo seu tema, mas também pela arena midiática inchada de seu próprio tempo.

As comparações canônicas guardam certas revelações. Primárias (1960), filme de Richard Leacock frequentemente citado nas defesas de Weiner, se tornou um clássico do cinema pela conjunção de sua narrativa histórica com um específico tecnológico: a câmera portátil 16mm e a leveza da gravação de som sincronizada (além da emergência da televisão) iam ao encontro do político moderno – John F. Kennedy – criando um corpo único que encarna, simultaneamente, o fio das explorações cinematográficas com uma mudança na paisagem política e retórica capitaneada pelo então senador de Massachusetts. O filme antecipa um momento político ao encontrar, em seu principal personagem, um espelho de seus próprios desejos – confirmados pela surpreendente ascensão de Kennedy à presidência, meses depois. O corpo-a-corpo com as descobertas de Jean Rouch e do cinema vérité mergulham mais profundamente em um mesmo solo, em busca de camadas mais profundas que não podem ser exploradas sem o risco de efeitos colaterais desconhecidos e inesperados.

De lá pra cá, a Bolex 16mm foi susbstituída pelos smartphones, a TV foi subsumida pela internet e as imitações pálidas de Kennedy se proliferaram muito além das fronteiras norte-americanas. O problema é que Krigman e Steinberg não são Leacock-Pennebaker-Maysles (fotógrafos e montadores de Primárias que se tornariam grandes cineastas), e Weiner não é Kennedy. O filme acena à filiação sem jamais aspirar à mesma relevância, se perdendo entre o populismo requentado e a capacidade de concentração de um feed do Twitter. Se à época de Primárias o acesso de fato não tinha precedentes, hoje ele se tornou a norma, e o recolhimento e o pudor, grandes exceções.

Mais recentemente, outros filmes desenvolveram diferentes estratégias para a perigosa missão de tentar se aproximar de animais políticos. Em In the War Room (1993), é o próprio Pennebaker quem decide se concentrar precisamente no circo midiático em vez de em seu disparador – Bill Clinton – acompanhando seus soldados de campanha. Poucos anos depois, em Israel, Avi Mograbi encena seus medos e limitações em fazer um filme sobre Ariel Sharon (controverso ex-primeiro ministro) apontando a câmera para si mesmo em uma espécie de exercício político-terapêutico com How I Learned To Overcome My Fear And Love Arik Sharon (1996). Recentemente, na Suíça, Jean-Stéphane Bron (diretor de Cleveland vs. Wall-Street, 2010) mergulhou na intimidade de Christophe Blocher, espécie de correspondente helvético de Berlusconi ou Trump (sem o impulso sexual). A tendenciosidade assumida de The Blocher Experience (2013) visava assumir, de partida, a derrota no campo de batalha das imagens para um político veterano, deixando-se entrelaçar totalmente na mise-en-scène do personagem e de sua vida cotidiana, admitindo a derrota das relações públicas, mas não a do cinema (com resultado irregular, mas de louvável coragem).

Em Weiner, nada sequer passa perto. Será, o filme, a mais acabada expressão de uma zeitgeist que me escorre entre os dedos? A pergunta seria relevante se existisse, em contrapartida, um lastro cinematográfico que a colocasse de pé. Weiner (o homem) projeta a impressão de não ter muita idéia de o que está fazendo, assim como o filme, que nos coíbe a um apedrejamento tão imediato e duro quanto o feito, à época, pelos moradores da cidade em relação à sua persona pública. No fim, resta apenas o prazer aparente de um retrato pessimista de uma sociedade através de alguns de seus mais ilustres integrantes: Weiner e sua esposa, Uma, colapsando diante de nossos olhos.

Assim como seus personagens, o filme também parece incapaz de saber o momento de parar. Em retrospecto, é nas voltas de carro que o filme encontra um retrato possível que consegue respirar junto de seus personagens. Apertado no banco de trás, Kriegman faz uma pergunta ao político em campanha, espremido contra a janela, a que Weiner responde: “não sabia que moscas sabiam falar”. Se há um índice de honestidade em se manter a cena no filme, explicitando a quebra de um contrato para ser uma “mosca na parede” à maneira do cinema direto, a interação encapsula a acidentada trajetória do filme: é parte de seu instinto aferroar como uma vespa. Com isso, porém, perdem-se tanto o jogo político, a narrativa de sobrevivência deste power-couple e as metáforas possíveis da América, da política, da mídia e do cinema contemporâneos. Sobra apenas a impossibilidade de contenção, a ansiedade em quebrar a quarta parede e trocar a escuta e a osbervação pela necessidade permanente de interação.

Retomando a relação com o romance de Golding, pode-se dizer que Weiner começa o filme como Ralph (o virtuoso), descamba para Jack (o poder a qualquer preço) e termina na pele do Porquinho (o garoto esperto submetido a um corredor polonês social). Em O Senhor das Moscas, o Porquinho é assassinado pela gangue de Jack, o autocrata violento, em uma cena com claro subtexto homoerótico. O senhor das moscas é a tradução literal de Belzebu, o diabo, sugerindo que o mostro é apenas parte de “nós” – do lado de cá da câmera e da tela. Curiosamente, os poucos momentos de lucidez de Weiner vêm justamente de Weiner: comprovando sua percepção aguda das dinâmicas em curso, Weiner reage à falsidade e hipocrisia dos diretores: “eu odeio bullies”. O recado morre em paredes surdas; tanto Weiner quanto o filme parecem não ver outra saída a não ser o gozo de sua auto-destruição.

Tradução de original em inglês por Fábio Andrade

Share Button