Um Outro Ano (You yi nian), de Shengze Zhu (China, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

Cobertura do 5o Olhar de Cinema

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As minúsculas rugas dos dias
por Pablo Gonçalo

Quantos anos cabem num singelo dia? Quantos dias cabem num único plano fixo? O que a câmera pode nos revelar de uma simples família se olharmos todo mês fixamente duramente uma dezenas de minutos? Escorregadio e inapreensível, o tempo chega como o principal personagem deste documentário de Shengze Zhu. Quando é longo, estica-se. Quando curto, veloz. Sim, também pode-se falar que filma-se o cotidiano tipicamente chinês. No decorrer desse ano do filme – em cerca de treze planos-sequências, e dos seus longos ou curtos dias – vê-se uma modesta família sentada numa mesa, sem remeter exatamente a qual dia da semana. O núcleo familiar é composto por três gerações: uma avó, um casal, e três filhas, sendo que há uma adolescente e duas menores, espoletinhas que pululam, agitadas, entre a câmera fixa e o fora do quadro. É com esse arranjo extremamente simples e minucioso que o filme consegue, com aguda sensibilidade, captar os detalhes mais remotos das sensações que pairaram nessa família chinesa.

Elipse: esta é a palavra-chave no dispositivo proposto por Shengze Zhu. Primeiramente, deve-se lembrar que a elipse nos “documentários” revela muito, pelo corte, de pedaços de história que ficaram ausentes do quadro. Lembro, aqui, dos rostos de Elizabeth Teixeira, no clássico de Eduardo Coutinho, cuja elipse de mais de duas décadas torna visível a passagem do tempo. Haveria vários outros documentários como exemplos similares. Importa, aqui, apenas mencionar que as elipses, quando assim filmadas não padecem de maquiagens ou outras máscaras. Entre os quadros, em cada intervalo, por menor que seja, é o tempo nu quem toma a voz, o corpo, os gestos. Há, em Um Outro Ano, um exemplo bem eloquente dessa peculiar retórica dos segundos, dos minutos, das mais remotas horas. Creio que no terceiro mês de filmagem sabe-se que a avó da família sofreu um derrame e teve que ser hospitalizada.

Esta talvez seja a principal informação narrativa e dramática do documentário. A filha fica mais apreensiva. Busca apoio e o pai acaba por jantar sozinho com ela enquanto ambos veem televisão. Quando ela ressurge no quadro, a avó já está totalmente debilitada. Calada, andando com muita dificuldade, ela já não é mais – de fato – a mesma senhora expressiva e agitada de poucos meses e quadros atrás. A avó assim vai quedando: sem muitos sobressaltos, mas mais ao canto, mais taciturna frente o passar do tempo. Se o seu desgaste corporal é evidente, o mesmo não ocorre com os demais, que seguem o dia-a-dia, entre conversas repetitivas sobre pequenos eventos na escola, com os vizinhos, e, claro, dentro da casa. Com um peculiar aprumo, Shengze Zhu torna mínimas essas elipses. Os saltos mensais revelam muito poucos: o corte de cabelo da caçula, a mudança de humor da adolescente, a presença e ausência do pai, um natal que está para chegar. Num instigante contraponto, por outro lado, Shengze Zhu esmera primorosos planos fixos, que lembram, por exemplo, o ritmo de No Quarto de Vanda (2000), de Pedro Costa. No caso de Zhu os planos fixos incorporam, qualificam e sutilmente anulam todas as possíveis informações dramáticas oriundas do corte e da interrupção. Existem vários intervalos que estão fora do quadro, mas só podemos supô-los por aquilo que nos é visível, audível e imediatamente presente. No mais, meras abstrações ou especulações, já que Zhu nos obriga a simplesmente celebrar o mistério que compartilhamos quando vemos em segredo e silêncio o decorrer de vidas tão comuns. A vida, ela própria, aos poucos, parece apenas seguir seu ritmo mais prosaico e corriqueiro.

Será que segue mesmo? Curiosamente, a família não apenas almoça, lancha ou janta. Há uma outra camada midiática que também traça uma presença temporal nas duas salas que são filmadas. Trata-se da televisão: sempre ligada, sempre interferindo no quadro, nos comentários e comportamentos. Qual seria, por outro lado, a singularidade temporal dessa televisão? Lembro, nesse ínterim, de André Bazin, que dizia ter nesse incessante fluxo da televisão algo próximo a uma pulsão de morte, como se a imanência do tempo, tão sintética e evidente no aparato cinematográfico, ecoasse, pela TV, no seu justo oposto – ou seja, na perda do tempo, nas cinzas das horas. No documentário de Zhu, são esses resíduos dos segundos que se acumulam entre as imagens da televisão, que muita vezes não vemos, as retinas da família que as apreendem com tenacidade e, nós, meros espectadores, que assistimos a tudo um tanto passivos, um tantinho comovidos. Almoça-se, janta-se, vê-se algo na televisão, comenta-se dos vizinhos. Passa-se um natal. Não vemos imagens do mundo, e lá quedamos, entre a família, seu jantar, seus programas de televisão. Chega mais um ano e o tempo de convívio dessa família atravessa cada objeto, cada gesto do quadro. Já escreveram o livro dos dias. Já criaram versos sobre a cinza das horas e não são poucos os diários filmados, entre Mekas e Perlov, que se tornaram célebres. De forma tão precisa e modesta, o que Zhu realizou foi um pequeno filme dos meses. E isso, como se percebe, só torna-se um dispositivo óbvio depois que foi feito.

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