Um Conto de Michel de Montaigne (Un Conte de Michel de Montaigne), de Jean-Marie Straub (França, 2013); e Diálogo de Sombras (Dialogue d’ombres), de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (França, 2013)

junho 2, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

Um Conto de Michel de Montaigne (2013), Jean-Marie Straub

Um Conto de Michel de Montaigne (2013), Jean-Marie Straub

Nas sombras da imagem
por Raul Arthuso

Os médias-metragens Um Conto de Michel de Montaigne (2013) e Diálogo de Sombras (2013), vistos em sequência, deixam muito evidentes suas diferenças, apesar de realizados com um breve intervalo entre eles e de utilizarem praticamente os poucos mesmos elementos (já bastante frequentes na obra recente de Jean-Marie Straub).

Um Conto de Michel de Montaigne é um deleite para o senso comum de Straub como um cineasta do texto e da palavra: mais uma vez, a ênfase está no domínio da declamação de uma obra clássica, tentando reforçar certos sentidos perdidos no texto e sua relação com o tempo. A estátua de Montaigne, espécie de refrão na estrutura do filme, marca a cristalização de sua obra, processo pelo qual se perde seu sentido profundo em favor da construção de um “monumento literário”. Se o filme insiste na observação da estátua durante a leitura do texto, é numa espécie de esperança vã de que o monumento rebele-se contra sua própria imobilidade.

Há, contudo, uma desafagem inconciliável, marcada pelos longos trechos em que o texto é declamado em tela preta. Palavra e autor parecem irremediavelmente apartados, e a falta de comunicação entre a imagem desse monumento com a leitura dinâmica e declamada do conto é evidente. Assim, o plano em que a leitora do conto – que aparece repetidas vezes ao longo do filme, em ambiente distinto do que guarda a estátua do escritor – enfim aparece ao lado da estátua de Montaigne chama atenção por sua artificialidade: é ela quem se torna uma estátua ao lado do monumento, não permitindo interação. A tentativa de redescoberta e a estruturação em torno do texto de Montaigne fracassa num certo comodismo e desafagem de performance em relação ao que Straub já fez de melhor nesse mesmo sentido, ao longo de sua carreira. Um Conto de Michel de Montaigne é uma fugidia sombra de suas melhores apropriações literárias.

Diálogo de Sombras (2013), Jean-Marie Straub & Danièle Huillet

Diálogo de Sombras (2013), Jean-Marie Straub & Danièle Huillet

Diálogo de Sombras difere completamente, saindo dessa zona de conforto. É um filme descompassado: há um disjunção que cria um interessante jogo, por Straub aparentemente usar o mais corriqueiro dos procedimentos da linguagem cinematográfica – a montagem em campo e contra-campo de um diálogo – para compor um pequeno ensaio sobre a natureza da ligação frágil entre os dois elementos- dois planos, dois cenários, duas pessoas. Os dois planos que compõem o diálogo são sempre os mesmos quadros, levemente deslocados do “bom enquadramento”, deixando as personagens que lêem o texto (um homem e uma mulher) no canto inferior da tela. Dentro desse diálogo, entretanto, as personagens não se olham, os tempos da falas não se encaixam perfeitamente e a leitura declamada do texto raramente dá uma pista sobre as intenções das réplicas. O filme se faz de um diálogo, enquanto dramaturgia, que nunca se concretiza de fato; sempre existe algo entre.

A relação entre os planos passa então para o puramente pictórico: as folhas, o vento, as cores, as formas no quadro. A natureza enquadra o homem e o sentido da palavra vai se dissolvendo, deixando-se levar pelos mínimos movimentos impregnados nos galhos e nas folhas que balançam com o vento, no rio que corre no segundo plano da imagem, na sombra formada sobre os rostos, na luz que teima em penetrar por entre a vegetação que domina o enquadramento.

Os dois planos progressivamente tornam-se opacos, na medida em que refratam a ingenuidade de pensar a contiguidade do espaço composto pelos dois planos como algo absoluto. Entre eles, todas as configurações são possíveis, e o exercício visual de Diálogo de Sombras está na imaginação da ligação das duas personagens a partir do olho, e não do intelecto. É nesse sentido que Straub filma o que há entre os dois planos, formulando fundamentalmente o que está além da forma humana e do sentido da palavra proferida.

Straub retoma aqui o fascínio pelas folhas que balançam atrás do bebê em Le Repas de Bébé (1895), de Lumière, quando o registro se abre para algo além do assunto imediato. Isso é transposto no filme para o artifício da montagem e a leitura do texto, para o fascínio de perceber como um corte não é simplesmente uma operação mecânica e o quanto o texto compartilha sua natureza sonora com o som do vento batendo nas folhas. É a prevalência do som sobre a sintaxe, o encontro das coisas brutas, da natureza dos elementos de composição do filme em detrimento da articulação mecânica e usual da linguagem. O diálogo aqui é uma imanência, um estado de pré-formação.

Curiosamente, Diálogo de Sombras é assinado também por Danièle Huillet, parceira de carriera de Straub, falecida em 2006. Para além de questões práticas, o plano anterior à cartela de créditos iniciais dá uma chave interessante: o céu emoldurado pela copa das árvores numa bela fotografia em preto e branco. Esse é um diálogo perfeito entre os elementos: o movimento das nuvens é destacado pelo formato das árvores na borda inferior do quadro e o ritmo da música interage com a cena, marcando a opulência dessa natureza bruta desvelada pela câmera. A constituição perfeita do plano, porém, é algo que se perde no restante do filme. O que se passa depois da cartela do título parece uma tentativa de reconstituir esse primeiro momento de verdadeiro diálogo, mas o espaço entre dois planos torna a interação difusa. Straub marca a ausência de sua parceira nesse diálogo perfeito que não é mais possível: quando, no plano final, as duas personagens se encontram no mesmo quadro, já não há mais palavra, nem um olhar direto, apenas a sombra de uma relação que não existe mais. Compartilhar o mesmo plano, ao invés de concretizar algo, afirma a impossibilidade: se o preto e branco do início do filme lembra vagamente o tom dos primeiros filmes da dupla Straub-Huillet, o plano final é uma bela homenagem à parceria que não pode acontecer senão de um jeito difuso, nas sombras da imagem.

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