Trapaça (American Hustle), de David O. Russell (EUA, 2013)

fevereiro 11, 2014 em Em Cartaz, Filipe Furtado

trapaca1

O encantamento na terra dos burocratas
por Filipe Furtado

No centro de Trapaça, se encontram uma serie de discussões entre o agente de FBI vivido por Bradley Cooper e seu superior interpretado pelo comediante Louis CK. Cooper é pura neurose; pronto para consumir mais espaço, encena repetindo o mesmo “eu quero”; enquanto CK, que, vindo do stand-up, gosta de se afirmar como um não-ator, é responsável pela única atuação comedida de todo o filme: seus olhos apenas expressam a perplexidade do burocrata de carreira diante das ambições grandiloquentes do seu funcionário. A tensão recorrente dessas trocas, estruturadas em torno de uma anedota nunca terminada do passado de CK cujo suposto grande significado o filme usa como matéria de chacota, é a expressão mais bem realizada da tensão recorrente dos próprios filmes de David O. Russell – entre o sonhador apaixonado pelas possibilidades de encantamento do maquinário hollywoodiano (e, mais do que qualquer outro cineasta da sua geração, Russell sempre ambicionou fazer um pastel de vento como Trapaça) e o contador pronto para mantê-las em cheque e garantir que todas as muitas digressões nunca tirem as engrenagens dos eixos.

trapaca02

Um filme corrupto sobre tipos corruptos que surpreende pela sua completa falta de malícia, tudo em Trapaça aponta para um orgulho pelos próprios fogos de artificio. A começar pela opção de situar a ação nos anos 1970 (o filme se inspira muito livremente numa operação anti-corrupção do período), com todos os significantes fáceis de nostalgia e pela maneira que frequentemente traz à memória outros e melhores filmes. A cumplicidade que Trapaça busca com o espectador é de uma afetividade cinéfila. Há intermináveis sequências nas quais o vigarista de Christian Bale explica seu credo sobre como seu alvo/espectador estará sempre pronto para comprar o truque que ele pretende vender. A ideia é repetida à exaustão até não restar duvida que o próprio filme crê seriamente na tolice que vende. Pode-se criticar Trapaça por muitas coisas, mas não pela sua falta de sinceridade. O filme se estrutura menos como uma narrativa (um dos elementos mais refrescantes dele é seu completo desinteresse pelo golpe central), e mais como uma série de negociações na qual o próprio filme parece tão interessado em vender seus truques ao espectador quanto seus personagens trambiqueiros em avançar seus golpes.

A estética de Russell é de brechó, uma serie de movimentos devidamente roubados de outros filmes nos quais o nosso reconhecimento é central, mas sua personalidade é neutra demais para reimaginá-los como um Wes Anderson e Quentin Tarantino são capazes, para ficarmos em dois conterrâneos seus que operam de forma similar. O uso de detalhe local e música, em particular, trazem à mente Martin Scorsese (e o caos estrutural lembra com menos intenção o Scorsese tardio), algo reforçado por uma ponta de Robert DeNiro como um chefe da máfia numa das sequências de conflito de camadas de artifício mais bem resolvidas do filme. Há tantos elementos brigando por espaço naquele momento (como a figura grotesca de um agente mexicano interpretando um sheik árabe) que a entrada em cena de DeNiro fazendo mais uma variação do número autoparódico que se tornou sua especialidade nos últimos 15 anos sugere somente mais um elemento de cena natural. A entrada da máfia na ação, porém, também serve para sublinhar os limites claros do projeto: Trapaça é tão seguro que o filme fracassa em qualquer tentativa de articular um sentimento de perigo. O filme como um todo sugere um simulacro de cinema de gênero da década de 1970, no qual toda a sujeira fora devidamente apagada com a ajuda de computadores.

trapaca3

Muito mais que Scorsese, porém, David O. Russell sugere o desejo de ser uma espécie de Cassavetes populista. O filme todo é construído como uma série de encontros entre personalidades expansivas dispostas a dominar o plano. O estilo de Russell sempre valorizou superfícies excessivas que alcançam a autenticidade a partir de alguns detalhes bem observados, o que é algo que poderia ser dito de Cassavetes, mas suas sequências individuais nunca alcançam o mesmo fluxo de sentimentos, muito porque seus mecanismos permanecem por demais expostos. Falta ao filme um mínimo de perversidade para fazer suas ideias irem além do funcional.

Tudo em Trapaça é um tanto nervoso demais, seus tiques de construção de cena perdem o vigor após um par de rolos, os trejeitos excessivos dos seus atores (somente Cooper e Jeremy Renner como o político corrupto, que calha de ser a personagem mais honesta do filme) parecem ter controle sobre suas presenças, o desespero estético do filme casa com o desespero das suas personagens. O filme termina por sugerir uma série de pretensas grandes cenas sem uma liga, e o momento em que Jennifer Lawrence canta “Live and Let Die” é provavelmente o exemplo mais bem acabado disso.

É uma pena que Trapaça exista num momento do cinema americano no qual o suposto bom cinema precisa se afirmar via grandiloquência (basta pensarmos no título risível do filme), já que o tom inflado do filme joga contra suas virtudes modestas. Russell é o raro mau diretor dotado de bons instintos e ele frequentemente salva personagens e momentos com alguns detalhes bem observados. Por exemplo, quase tudo sobre a presença de Jennifer Lawrence é um desastre, mas suas sequências são salvas pela ideia de apresentá-la limpando mal o mesmo apartamento classe média mobilhado e filmado de forma opressiva; a concepção do espaço ilumina a personagem mais do que todas as situações e tiques de atuação que o filme lhe proporciona.

Trapaça segue fraquejando no plano geral para encontrar um refresco no plano de detalhe. O filme perde a guerra, mas no processo pode dizer com orgulho que venceu algumas pequenas batalhas. É o destino final do sonhador em meio ao cinema dos burocratas.

Share Button