Toni Erdmann, de Maren Ade (Alemanha/Áustria, 2016); Harmonium (Fuchi ni tatsu), de Kôji Fukada (Japão/França, 2016)
setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo
* Cobertura do Festival de Cannes 2016
Fuchi ni tatsu
Família, uma ponte para o passado
por Eduardo Valente (colaboração especial)
Entre as temáticas que, ano após ano, nos pegamos discutindo em um festival como Cannes, as distintas configurações (e crises) no seio do que a célula familiar representa no mundo contemporâneo parece ser uma das mais inescapáveis. Pois em 2016 não seria diferente, e a julgar pelo que nos mostram dois recentes filmes vindos da Alemanha e Japão, os prospectos não são dos melhores para a “família tradicional”.
No cerne do alemão Toni Erdmann há uma relação entre um pai entrando na chamada “Terceira Idade”, divorciado que vive só e um antigo hippie de carteirinha, com sua filha, que tem entre 30 e 40 anos, executiva de sucesso e profissional workaholic – vivendo fora do país numa economia “emergente” (Romênia), trabalhando numa dessas empresas pouco definidas que “prestam consultorias” (e, na verdade, buscam encontrar fórmulas para justificar demissões massivas). Aparentemente trata-se de um conflito geracional simplista (ainda que bastante comum), mas o filme de Maren Ade segue caminhos narrativos e dramáticos que são tudo menos que isso. Isso porque, em vez do realismo naturalista em torno desse conflito de gerações, o que a ela interessa encenar são justamente os “jogos de cena” de uma sociedade em que, cada vez mais, parecer e “performar” são verbos mais importantes do que ser e estar.
Assim, face ao conflito aberto e à falta de capacidade de encontrar um ponto de relação entre ele e sua filha, o que o pai resolve fazer é criar um personagem. Com uma bizarra peruca e uma ainda mais bizarra dentadura, ele passa a “assombrar” a vida de sua filha em ambientes sociais e profissionais, tensionando bruscamente toda a série de relações nas quais ela está envolvida. Num filme menos provocativo, a resposta dela seria o confronto e a exclusão, mas Ade (e sua atriz principal) não se interessa por essas saídas fáceis, e sua protagonista “compra a aposta” do pai, e responde com força igual no seu cotidiano. A crise, portanto, passa a ser menos de um contra o outro, e muito mais uma crise comum a ambos de sua representação dos papeis sociais, no mundo da família e do trabalho. “Germanicamente”, o filme faz isso tudo com um tom bastante distante, frio e sem maiores arroubos emotivos, enquanto encena situações absolutamente inesperadas com grande domínio dramático e de criação de situações limite – das quais saem pelo menos um punhado de cenas memoráveis. O final dessa crise é surpreendentemente positivo, não num otimismo “afetivo” banal, mas na possibilidade de que o confronto siga adiante com novos posicionamentos tomados. Como se a necessidade de ver o mundo por outros olhos (inclusive os de uma monstruosa criatura mítica coberta de pelos por seu enorme corpo, por exemplo) não necessariamente nos trouxesse um maior entendimento contente do mundo, mas forçosamente nos colocasse a partir de uma nova perspectiva.
No japonês Harmonium, a nova perspectiva para um núcleo familiar distanciado e frio virá pela chegada de um elemento externo, um fantasma do passado do pai que chega para cobrar o preço de decisões anteriores. Trata-se de um amigo de infância saído da prisão, que pede como “compensação” pelo silêncio que guardou que o pai da família o incorpore à sua casa e ao seu trabalho (que aqui se confundem, pois a empresa familiar funciona na garagem da casa). Essa incorporação, inevitavelmente, começa a gerar novas linhas de poder e de relacionamentos, na medida em que o pai se exime constantemente de “ocupar” determinados espaços afetivos. Ainda que a estrutura em si dessa invasão pareça bastante esquemática (particularmente pela figura do pai, sempre estática na sua incapacidade de enxergar o que se passa à sua volta), tanto a presença física do genial ator Asano Tadanobu como o estranho que chega quanto a radicalidade do lugar até onde o diretor Koji Fukada decide levar sua narrativa (seja pelo viés sexual, seja pelo da violência) fazem com que o filme nunca perca seu interesse.
A partir da virada radical que a narrativa toma em determinado momento, as ideias de transmissão entre pais e filhos e da aleatoriedade das formações familiares são testadas no seu limite. A radicalidade desse mergulho é das mais interessantes, pois não interessa a Fukada nenhum tipo de “sutileza” – seja no campo da interpretação dos atores, seja na maneira como a narrativa evolui rumo ao seu final trágico inevitável. Acompanhar até onde ele se dispõe a “mergulhar” de cabeça (literalmente, inclusive) na construção de seu “melodrama à japonesa” é uma experiência inegavelmente forte, mas seria falso dizer que Fukada domina totalmente as difíceis variações de tom e de distância que constrói entre seus personagens, e entre eles e quem assiste o filme. Inegável, porém, é a constatação de que a sociedade japonesa já não consegue encontrar mais o sentido em determinados rituais e papeis que antes encontravam guarida no respeito às tradições e nas contenções dos impulsos mais primitivos. Unir-se a essas alturas à defesa dessas construções, nos dizem alemães e japoneses, é assegurar uma ponte para um futuro desastroso.
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