Timbuktu, de Abderrahmane Sissako (Mauritânia/França, 2014)

maio 16, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

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Cantos e uivos de resistência
por Pablo Gonçalo

Um filhote de veado corre pelas areias, num deserto, fugindo, desesperado, enquanto, em off – durante esse travelling lateral -, ressoam tiros de metralhadoras, encadeados e simétricos. O plano expressa velocidade, é dinâmico, mas, curiosamente, nos seus detalhes, parece um tanto lento, como se denunciasse um delay… como se suplicasse por uma pausa, por um respiro, para que os tiros ausentes não invadam a cena. Vem o corte, os tiros chegam e atingem totens africanos – figuras de madeira que são dilapidadas, furadas, e se desfiguram no ritmo cinematográfico das balas. São tiros que não alvejam pessoas, que não ferem nem sangram; tiros sem corpos, automáticos; tiros sem sujeitos, que miram mais do que os objetos; projéteis que querem aniquilar os valores carregados e transmitidos por aquelas esculturas. Estamos, claro, diante das duas primeiras sequências de Timbuktu, de Abderrahmane Sissako, e ambas as cenas, justapostas, sintetizam o cerne do intricado contraponto tecido pelo diretor. Há, de um lado, a ânsia por uma fuga, a vontade um tanto inócua de escapar, mas que urge, que grita, que é necessária. Do outro lado, há uma inquietação em flagrar imagens que persistem, que perseveram e preservam sentidos e valores, a despeito dessa violência insistente em sufocá-los.

Como nas suas obras anteriores, Sissako ergue sua dramaturgia visual em pequenos vilarejos no deserto da Mauritânia. São povoados que permitem uma vida simples, de caça, pesca, coleta, e um cotidiano em harmonia com as areias do deserto, a vasta paisagem, a luz adusta e o vento que sopra e espalha as pegadas dos seus personagens. Timbuktu é o nome desse povoado, mas aqui a maior novidade dramática está na inserção de um grupo de terroristas – palavra com teor ocidental – islâmicos e ortodoxos que, com armas em punho, regem o dia a dia do povoado. Os habitantes – vale dizer – não são exatamente árabes, mas mouros, meio árabes, meio africanos convertidos ao islamismo, e por isso, talvez, interajam com os ‘invasores’ entre farsas e sabotagens, frente às inúmeras regras que destoam de suas heranças e convicções culturais. O filme instala-se nesse entre-lugar preciso, fronteiriço, entre uma ortodoxia – na etimologia de regras restritas, sem excessões – e leis que não reverberam como legítimas.

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Nos minutos iniciais, gestos sutis revelam o reverso dos hábitos islâmicos: alguns terroristas entram armados num ambiente de preces e, diante do acontecimento, um dos fiéis pede para que eles se retirem. Nesse decoro, rezas não rimam com rifles. Em outra cena, um dos terroristas vai até a casa de Satima (Toulu Kiki), mãe de Toya (Layla Walet) e casada com Kidane (Pino). O terrorista fica encantado com ela e, num gesto ambíguo, de fascínio e (falso) pudor, exige que ela cubra o rosto. Destemida, ela responde que não vestirá o véu. Com paciência e orgulho, Satima passa a cena lavando os cabelos ao lado de uma bacia d’água, diante do deserto. Ela está em casa, diz, e não convidou ninguém. Se não quiser ver o seu rosto, provoca, que vá embora.

Timbuktu é fortemente temperado por esse tipo de coragem, que pulula em diversos planos do filme. Zabou (Kettly Noel) é a personagem icônica dessa perseverança. Como uma contra-mola que resiste, com a face alegre à mostra, ela veste roupas cheia de cores, destoa, e interpela os soldados terroristas. Em um francês enfático, manda-os à merda. Tem trejeitos de bruxa, ares xamânicos, perversos, e ironiza, e satiriza, e debocha, e paira com a força de uma aura original. Mais do que denunciar as regras absurdas dessa ortodoxia, Sissako testemunha um teatro de resistência, um teatro do cotidiano que tenta destituir o significado de códigos sem sentido.

Esse teatro acaba por atingir os próprios terroristas. Embora o futebol seja proibido, alguns desses sunitas, de turbante e com armas em punho, discutem sobre Messi, Zidane e a copa do mundo de 1998. Instantes depois, eles acompanharão o julgamento de um grupo, condenado a dezenas de chibatadas por ter jogado futebol. Paralelamente à resistência, portanto, há dissimulação, cinismo e oportunismo, como se existissem mediações mais complexas e bem distantes de pólos apenas contrários e antagônicos. Num contraponto, Sissako cria uma cena poética: os habitantes de Timbuktu jogam uma partida de futebol com traves dos dois lados, dois times, movimentos, dribles e faltas, mas, sintomaticamente, falta a bola, e, com essa ausência, os jogadores chutam areia ao vento. Indiretamente, a cena remete à sequência final de Blow Up, de Michelangelo Antonioni, na qual mímicos jogam uma partida de tênis sem bola. Contudo, mais do que uma fábula sobre o cinema e a imagem, Sissako, no seu retrato desse povoado, quer revelar as subversões e teimosias inerente aos hábitos culturais. Mesmo sem uma bola, mesmo proibido, resiste um prazer de jogar que arma nenhuma estiola.

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Gritadas todos os dias por um alto falante, num torpor medieval de governar os indivíduos, as regras do alcorão não são unilateralmente incorporadas, mas traduzidas, ressignificadas, como os liames das quatro línguas faladas na região (o dialeto hassanya, o árabe, o francês e o inglês), gerando situações indefinidas, fronteiriças. Em Timbuktu, há objetos que parecem fora do mapa daquele povoado – como as armas, os celulares, os computadores, as ondas da internet que chegam tão rápido como desaparecem – e que, no entanto, remapeiam as relações, reconectam a densa teia do dia a dia. As imagens e os dramas vividos pelos personagens de Abderrahmane Sissako, assim, situam-se entre cancelas e horizontes, entre formas de interditar, de colocar limites, de impor a força, e formas outras, mais sutis, de modificar, de passar além e transgredir. Essas fronteiras emergem, teimosamente, a despeito do deserto que as acolhe.

Assim, entre ruídos de comunicação, Sissako revela, aos poucos, como a violência se instala, como a lei, com vagar, é vivida, experimentada, e consegue se impor. O nome da força, portanto, também tem trejeitos teatrais. Não por acaso, é pela justiça, como farsa e como modo dramático, que a lei, de fora para dentro, se efetiva. É nesse mote que as torturas surgem: como encenações públicas, insígnias de um poder incipiente, mas que não fraqueja. Rostos apedrejados, corpos soterrados, chibatadas, execuções. Todos vêem, sentem e são impelidos a baixarem a cabeça. Numa das cenas mais fortes do filme, uma moradora é condenada a quarenta chibatadas por estar cantando, à noite, de forma descontraída, junto a amigos, em sua casa (uma linda canção, diga-se de passagem). Ao ser punida, ela volta a cantar, em ato, no instante da porrada. Mais do que um sentido melódico, o canto é o local de plenitude, o local da resistência.

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Por outro lado, é possível delinear também uma trama, que conta a história da família de Kidane e do seu empenho vão em impor justiça onde não há. Muito exterior e alegórico, tecido de fora para dentro, esse plot acaba rendendo os momentos menos empolgantes de Timbuktu. Em algumas sequências, quase descamba-se para o mau melodrama, enfatizando emoções que envolvem a filha, a herança, a sucessão e o abandono. Na cena final, a escolha de Kidane não ecoa como um canto arraigado de resistência ou transformação, mas destoa, num afã solipsista, junto aos uivos pouco harmônicos dos camelos que acompanham o instante.

No entanto, mesmo que a trágica luta de Kidane seja pouco convincente e suas falas soem forçadas, seu desenlace não alcança o proscênio nem retira o protagonismo do complexo e convincente cenário que Sissako arquiteta. Quando surge, o melodrama apenas tangencia a força do local e não atenua a intricada dramaturgia desse vilarejo próximo ao deserto do Saara. Em Timbuktu, não há maniqueísmos, mas impasses; e os paradoxos e as oposições permanecem numa tensão imanente ao quadro, já que não arriscam síntese alguma. Não há dicotomias entre culturas superiores e culturas dominadas, mas modos de vidas que estão, todo dia, numa incessante e complexa interação. Vê-se culturas em fricção – em conflitos físicos, em moto contínuo. São as faíscas do choque, suas luzes velozes e voláteis, que Sissako tão bem desperta, registra, capta e poetiza.

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