The Second Game (Al Doilea Joc), de Corneliu Porumboiu (Romênia, 2014)

março 12, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

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O medo do espectador na hora da revolução
por Pablo Gonçalo

Simples, direta e sem subterfúgios, a sinopse de The Second Game nos coloca diante da crueza desse surpreendente filme dispositivo da Romênia. Trata-se de um jogo de futebol ocorrido em 1988 entre Dinamo e Steaua, os dois mais importantes times do país, que possuem uma rivalidade atávica, e sempre jogam um clássico. Não estamos, é claro, diante de uma fábula ou de um enredo, mas de um documentário, e o jogo que vemos é o arquivo na íntegra – quase em estado bruto – dessa partida quando televisionada. Com uma imagem intacta, a montagem, contudo, realça a fala dos espectadores dessa partida. Ou melhor, de dois espectadores especiais. De um lado, está o próprio diretor Corenliu Porumboiu, cuja voz ouvimos e pouco a pouco reconhecemos. Do outro, seu pai, que, não por acaso, foi o juiz daquela partida.

Com tons e flocos poéticos, o jogo foi cadenciado por uma forte neve. Mas, paulatinamente, percebe-se que havia, no ar, entre a neve que caía, algo mais. Apostando firmemente numa atualização do arquivo como imagem, fluxo e conceito, The Second Game é uma obra que sabe, como poucas, encadear camadas cumulativas e sobrepostas que transformam um olhar puro em um olhar que preenche sentidos. Mais do que um jogo de futebol comentado entre pai e filho – o que já seria um aula sobre a transmissão de códigos do olhar – esse filme compartilha três tempos distintos e complementares de interação com uma imagem de arquivo.

Primeiro, o do pai, que realmente vivenciou a partida. Muitas vezes seus comentários realçam detalhes que só o juiz apreende: falas dos jogadores, momentos em que se opta por uma vantagem em vez do pênalti, o instante preciso de terminar a partida, de dar o apito final. Numa segunda instância, há o olhar do filho que, à época, viu o filme quando foi transmitido pela TV. Em 1988, Porumboiu tinha treze anos e, durante The Second Game, confessa que ao assistir o jogo sentia medo como um espectador que não entendia ao certo o que aquele momento representava. Num contraponto, o terceiro olhar sugerido é o do espectador (não romeno, talvez) que, obviamente, não participou daquele contexto, não faz a menor ideia de quem eram aqueles jogadores e de o que realmente ocorria entre o campo e a torcida, entre o jogo televisionado e os seus espectadores.

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Esses olhares encadeiam experiências, elipses e incessantes atualizações do arquivo. A experiência do jogo vivida pelo pai. A experiência do filho como espectador. A experiência, numa elipse atualizada, entre pai e filho (re)vendo o filme, mais de duas décadas depois. E, óbvio, o primeiro contato do espectador que acompanha todas as elipses e atualizações para tecer a sua própria experiência. Habilmente, Porumboiu conduz o olhar para dentro e para fora do jogo; para o momento histórico e seu contexto, para o momento atual e sua releitura, incessante, infinita, do arquivo inventando novos fluxos fenomenológicos. O tempo da imagem torna-se tripartido e Porumboiu consegue, assim, escavar o arquivo de uma simples e banal partida de futebol transformando-a numa experiência arqueológica que aponta para o futuro.

Embora esses experimentos sejam fortes o suficiente para compor e justificar o filme, esta seria uma leitura estritamente formal. The Second Game, contudo, vai muito além desse formalismo; é, por natureza, um filme político, no melhor sentido do termo, e bastante inquieto com os diálogos entre o tempo (político) presente, e o tempo passado, entre a contenção, as agruras e as paradoxais heranças de uma revolta histórica que, ali, parecia uma bola cantada. Com sutileza e elegância, Porumboiu narra como aqueles dois times representavam as forças opostas do regime socialista na Romênia daquele época. Em síntese, jogavam, ali, o time da polícia secreta e apoiado pro Nicolae Ceausescu, o Dinamo, contra o o time do exército, o Steaua, que alguns meses depois acabou por derrubar o ditador romeno. A conversa entre o pai e o filho conclui que aquele jogo era um prenúncio latente da revolução que estava por vir, e, ao fim, ao cabo, veio, aconteceu.

É óbvio que trata-se de um anacronismo, mas esse detalhamento narrativo possibilitou que Porumboiu conotasse e partilhasse com o espectador o medo que sentiu, ou o equilíbrio ético que era exigido ao seu pai, o juiz de então. Aos poucos, toda bola dividida ganha outra dimensão e percebe-se o nervosismo dos jogadores que transpiram uma pancadaria iminente, prestes a ser estimulada e apreciada pela platéia.

Nesse recorte, The Second Game funciona como o prólogo ao documentário de Videogramas de uma Revolução (1992), de Andrei Ujica e Harun Farocki. Não apenas por retratar o mesmo período e contexto, não apenas por ser um filme de e sobre a mesma revolução, mas, principalmente, por apostar na imagem de arquivo e televisiva como a fonte que remonta a crônica de um fluxo histórico. Num dos comentários mais intrigantes, Porumboiu observa e ressalta que a partida é narrada com três câmera e uma delas, a que aponta para a reação da platéia, é sempre usada quando há uma reação um tanto inesperada entre os jogadores, dentro da partida. O controle do olhar transforma-se, ali, no controle de corpos, emoções e reações, como se fosse uma censura que ocorresse ao vivo para evitar ou escamotear acontecimentos históricos prementes. Uma ausência no campo dos acontecimentos, como bem mostram os primeiros planos de Videogramas de uma Revolução realçando o último discurso de Nicolae Ceausescu, antes da população, enfurecida, derrubá-lo. Curiosamente, ali, a câmera não mostrava a massa que estava no contracampo, atordoada para derrubar o ditador.

Assim, The Second Game alinha-se a filmes brasileiros que conotam politicamente o futebol enfatizando o que está fora do quadro, o que não entra no espetáculo. Lembro, por exemplo, de Fora de Campo (2009), de Adirley Queirós, que retrata os jogadores de futebol antes, durante e depois de uma aposentadoria forçada e precoce. Há, também, o simpático curta O Mundo Segundo Silvio Luiz (2000), de André Francioli, que traz o aspecto inventivo e anárquico da narração de futebol, que acontece ao vivo, no ato. Por fim, vale remeter ao filme (e ao livro) O Medo do Goleiro Diante do Pênalti (1972), de Wim Wenders, no qual a falsa narrativa do escritor Peter Handke nos convida a olhar menos para a bola, durante uma partida de futebol. Dentro do campo, talvez sejam os olhares do goleiro e do juiz os pontos de vista ímpares de uma partida. Nessas horas, a bola importa menos e o futebol transforma-se numa potência fenomenológica, numa forma de viajar para além da partida que está de fato em jogo.

Juntamente com todo esse contraponto formal e histórico, The Second Game é também um filme íntimo, familiar e caseiro, que pode ser lido como um simples diálogo entre um pai e um filho. Em determinado momento, o pai diz que não entende ao certo o sentido dos filmes dele, seu filho, diretor, e que ninguém teria interesse em rever aquela partida novamente, como um filme. O velho juiz, contudo, engana-se e é bonito sentir essa falta de diálogo ecoando entre o silêncio dos dois. Por outro lado, percebe-se um certo olhar de admiração e desconfiança entre o pai e o filho naquele momento do filme. Como figura simbólica, o juiz acaba encarnando uma força conservadora, de manutenção da ordem, de preservação dos códigos mínimos de convivência, a despeito de um contexto de revolução iminente. Juiz e pai, ali, andam numa perigosa corda bamba, lidando com dilemas éticos que exigem decisões velozes. Ao fim, claro, o pai dá o apito final e voilà: raramente um zero a zero foi tão poético.

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