The Neon Demon, de Nicolas Winding Refn (França/Dinamarca/EUA, 2016); The Handmaiden (Ah-ga-ssi), de Park Chan-wook (Coréia do Sul, 2016); Ma Loute, de Bruno Dumont (Alemanha/França, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

Cobertura do Festival de Cannes 2016

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A inflação dos autores – e alguns esclarecimentos sobre o final da cobertura
por Eduardo Valente (colaboração especial)

Se existe uma ideia que Cannes celebra, muitas vezes ao ponto da inadequação exagerada, é a do “autor”. Aqui, mais que em qualquer festival, a etiqueta que um cineasta traz a um filme é colocada sempre em primeiro plano – na entrada das salas principais da seleção oficial fica uma lista com os nomes dos filmes ao lado dos nomes dos diretores (com sobrenome em maiúscula, como é comum na França), a Quinzena dos Realizadores tem uma vinheta de abertura só com nomes de cineastas exibidos por lá, os nomes dos diretores é anunciado pelo microfone sempre que começa uma sessão oficial. Não é nenhuma surpresa, então, quando vemos que os próprios diretores participantes desse sistema eventualmente levam longe demais a crença em serem algo de enorme apenas por serem quem são (e por, às vezes, terem feito um ou dois filmes interessantes).

O maior exemplo em Cannes 2016 dessa hipertrofia da ideia da importância do autor (pelo menos entre os que eu pude ver, pois certamente havia outros sendo exibidos) foi, de longe, Nicolas Winding Refn e seu The Neon Demon. Para além de todo o entorno, se ficamos apenas no que está na tela, a coisa toda já começa muito estranha, com créditos iniciais em telas coloridas sobre a qual fica o tempo todo uma espécie de selo onde se sobrepõem as letras NWR. Sim, ele “carimbou” o seu filme na tela. Daí para frente, The Neon Demon é um claro exercício em megalomania e desejo de chocar com muito pouco que justifique sua ilusão de grandeza ou mesmo qualquer choque real. Talvez seja algo na água dos cineastas dinamarqueses contemporâneos, mas ao menos Lars Von Trier realizou alguns filmes realmente relevantes, ou consegue atingir momentos de interesse em (quase) todos os seus filmes. The Neon Demon não tem nada disso; sua “reflexão” (com o perdão da palavra) sobre a sociedade obcecada com a beleza através do mundo irreal da moda é abaixo do juvenil, e o trabalho estético parece muito mais com comerciais de vodka do que com qualquer capacidade de usar o espaço do cinema para causar efeitos reais de identificação ou repulsa. É uma obra antes de tudo pueril e inofensiva – nesse sentido, sua exibição para um público normal, na sessão que pude ver (e não o público da sessão com o cineasta presente, quase sempre acrítica, e nem as para imprensa, quase sempre equivocadamente crítica), foi precisa: ao final, nenhuma palma e nenhuma vaia, nenhuma polêmica a ser tida. Pessoas se apressando para a saída, mais preocupadas com o que iam ver (ou comer, ou escrever) depois do que em alongar aquela experiência de qualquer forma que fosse.

Outros dois cineastas “criados” por Cannes também exibiram seus filmes na Competição, com distintos níveis de relevância, mas certamente em grande parte rodando em torno de seu umbigo criativo. O sul-coreano Park Chan-wook, cujo Old Boy foi uma revelação e tanto na competição de 2004 (pode-se discutir bastante a importância real do filme, mas sem dúvida ele teve um grande efeito sobre o cinema coreano e mundial), apresentou seu novo The Handmaiden, primeiro filme realizado por ele na Coreia após uma dupla experiência frustrada em Hollywood (lá ele dirigiu o fraquíssimo Stoker e viu Spike Lee adaptar para os EUA Old Boy naquele que é provavelmente o pior filme feito por Lee em toda sua carreira). Não seria de todo difícil, nessas condições, entender que Park busque alguns expedientes “certeiros” do seu cinema ao fazer esse retorno para seu país natal, mas é curioso que justamente esses “toques de autor” sejam provavelmente as coisas mais fracas de The Handmaiden, que de toda forma é certamente o filme mais interessante do diretor desde… bem, Old Boy.

A história, mesmo adaptada de romance que se passa na Inglaterra vitoriana, se presta muito bem à ideia de Park de adaptar para o momento do domínio colonial japonês na Coreia, e o começo do filme permite antever uma inesperada observação de fundo histórico-social por trás do desenvolvimento da trama. Infelizmente, embora a questão sempre fique ali nas frestas, é uma das coisas menos exploradas pelo filme – que tem como sua grande força a história de amor louco ao redor da qual gira o resto da trama. É com bastante surpresa, até, que podemos dizer que Park faz algumas das melhores cenas de sexo do cinema recente, todas bastante vivas de tesão, suor e saliva. No entanto, Park não consegue aceitar que apenas a força dessa história (vivida por duas atrizes bastante entregues ao filme) e sua relação com a Grande História bastassem para fazer um belo filme – é preciso inserir uma completamente deslocada estrutura em três partes, que forçam rever a história por outros olhares e ângulos (ganhando-se muito pouco), ou ainda uma trama de vingança entre dois personagens bastante desinteressantes, e que se tornam foco da parte final do filme de maneira absolutamente injustificável. Talvez com medo de não ser mais “o Park Chan-wook”, e terminar rejeitado, o coreano entrega um filme que parece incapaz de ver onde está o seu centro.

Finalmente, o francês Bruno Dumont (que estreou mundialmente em Cannes com A Vida de Jesus em 1997, e esteve em competição mais duas vezes por aqui, sempre com prêmios) apresentou Ma Loute, um filme que reprisa vários dos seus temas ou ambientes conhecidos (uma investigação policial levada adiante por oficiais nada competentes, a região da França em que se passa, as interpretações de atores bem longe do naturalismo), mas que mergulha de cabeça num gênero (a comédia) que, se não estava distante de seus filmes anteriores num modo mais irônico e de estranhezas, aqui explode totalmente como o foco total de qualquer força que o filme tenha. Aí, talvez, resida a grande questão: sendo sem dúvida alguma uma comédia, seria Ma Loute engraçado? A resposta é bastante dúbia, na verdade, pois, sim, o filme tem muita graça (no elenco, por exemplo, a partir da combinação que Dumont propõe de atores famosos e desconhecidos, especialmente as presenças de Fabrice Luchini entre os primeiros, e do policial interpretado por Didier Desprès), mas ao mesmo tempo ele não é exatamente engraçado no sentido de manter o ritmo necessário de renovação ou engajamento do espectador com o material ao longo de sua duração.

Ma Loute tem muitas ideias fortes, tanto visuais como dramáticas, mas também gira em falso durante uma parte razoável de sua duração por não encontrar maneiras de fazer com que aquilo que surge com força na primeira vez que aparece na tela (a ideia do canibalismo, da luta de classes em modo quase selvagem, da inaptidão geral dos personagens – Dumont não é um fã dos seres humanos, digamos, pelo menos não dos mais afetuosos) se mantenha fresco e consiga surpreender ou tirar do seu conforto o espectador depois dos primeiros momentos de maior choque. O filme tem um cheiro de experiência, no sentido mesmo de permitir a Dumont descobrir novos interesses, e de descobrir suas capacidades de fazer algumas coisas nunca tentadas antes. Por isso apenas, que fosse, já seria um filme de considerável interesse. Um autor que duvide de suas fórmulas é um autor a se continuar acompanhando – o que faremos com Dumont, mesmo que Ma Loute não seja um grandíssimo filme.

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Um breve esclarecimento final sobre as condições práticas dessa cobertura: todos os filmes vistos foram comentados, com exceção dos brasileiros Aquarius e Cinema Novo, por conta de um conflito de interesses entre o trabalho diário de quem aqui escreve e a análise de filmes nacionais. Esse trabalho também explica que não se tenha podido ver 7 dos 21 filmes da competição (entre eles, os de Assayas, Dolan, Dardenne, Mendoza), e que não se tenha visto filme nenhum, por exemplo, na Quinzena dos Realizadores (onde as conversas no festival indicaram um ano bastante fraco, com destaque maior apenas para o novo filme de Marco Bellochio, e algumas defesas dos novos de Pablo Larraín e de Joachim Lafosse, mas pouco entusiasmo com os realizadores mais jovens) nem na Semana da Crítica (essa teve sim alguns filmes elogiados por pessoas bem confiáveis, como o ganhador do prêmio principal Mimosas, o francês Grave, o cambojano Diamond Island ou o italiano I Tempi Felici Verranno Presto). Foi, em suma, a cobertura possível de quem não é jornalista nem crítico full time. Espero que tenha sido interessante, mesmo com tantos buracos.

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