The Guests, de Ken Jacobs (EUA, 2014)

março 16, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

theguests

Quando o 3D te olha
por Pablo Gonçalo

Uma síntese arriscada, mas necessária: mesmo que seja impossível assistir a todos os filmes de um festival como a Berlinale, quem o fizesse certamente constataria que The Guests foi a obra mais radical da curadoria; a aposta num cinema que abre outras portas da percepção. Sim, essa enfática, pessoal e deliberada eleição pode soar como um exagero (e talvez gere contestações também justificáveis), mas, seja pró ou seja contra o filme, é impossível permanecer o mesmo depois da experiência visual que ele impõe.

Numa obra radicalmente inquieta como a de Ken Jacobs, que te convida à vertigem ótica, é prudente caminhar passo a passo e, primeiramente, descrever o filme com certa objetividade. De antemão, vale ressaltar que as experimentações cinematográficas de Ken Jacobs pareciam ansiosas para flagrarem uma maleabilidade 3D, hoje, de alguma forma, mais difundida. Com ele, a tridimensionalidade esboça gestos de uma linguagem potente e inquieta. Pois bem; por partes. O nome do filme remete a um trecho dos irmãos Lumière, que registra a chegada dos convidados ao casamento da irmã deles. A câmera é fixa, como nos demais Lumières, e há movimento de indivíduos e objetos dentro do quadro. Descrito assim, pouca novidade. No entanto, estamos diante de uma das tomadas menos conhecidas dos pioneiros do cinema e essa restrita circulação foi essencial para o jogo de imagens proposto por Jacobs. No seu tempo original, o trecho tem pouco mais de um minuto. O diretor, contudo, dilata sua duração à exaustão e, ao inserir um slow motion quase quadro a quadro, entre outros truques de trompe l’oeil, ele consegue alongar o arquivo por mais de uma hora – procedimento que pode ser visto aqui.

Nesse ritmo, o cineasta instaura seu gesto mais ousado: realiza um 3D onde, originalmente, não há, onde ele não existe, mas que o diretor, com ilusões e reificações óticas, instala a fórceps e, simultaneamente, duvida da ilusão que diz ter criado; mais: faz o espectador duvidar da ilusão que está vivendo. Tal como o convite ao casamento da irmã dos Lumière, os espectadores são convidados a dialogarem com o modo como as imagens são produzidas dentro do cérebro. É nesse instante ínfimo, às vezes pouco convidativo, que o ato de ver torna-se uma fábula real e, assim, Jacobs nos força a deixarmos de enxergar para, paradoxalmente, voltarmos a ver. The Guests, aos poucos, torna-se um filme de efeitos que sugerem contra-efeitos. É como se ele jogasse contra seu próprio dispositivo: começa-se, com o 3D, a ver detalhes inusitados ou quase invisíveis do quadro e do plano – e, com tais gestos, o filme dos Lumière volta a ser o traço de um quadro impressionista (o último impressionista, como dizia Godard), comum à sua época. São rostos, detalhes ínfimos, gestos deixando de gesticular, num dos maiores diálogos fenemenológicos com a pintura e as artes visuais que o cinema já fez. Nesse filme, Jacobs leva o 3D a uma experiência similar à arte cinética e ao jogo de cores e profundidades da pintura de Modrian. Estamos diante de uma obra plástica que realça superfícies.

No debate com a platéia após a exibição do filme, Ken Jacobs disse que foi influenciado pelo efeito Pulfrich, que constata, ainda nos anos 1920, que os dois olhos enviam sinais de imagem para o cérebro em tempos distintos. O hiato, nesse caso, não é o da persistência retiniana, que não consegue ver, pelo movimento do quadro, a passagem de imagens diferentes; bem diferente, o hiato do efeito de Pulfrich ocorre no intervalo entre os dois olhos e o cérebro. Pulfrich provoca um delay na imagem e pequenas diferenças de luz e, assim, cria um pêndulo, um tempo de diálogo entre o os olhos e o cérebro, entre uma imagem e outra. O curioso é que na história do efeito Pulfrich ele foi muitas vezes evocado para criar o efeito da tri-dimensionalidade. Em The Guests, Ken Jacobs realiza o contrário: instala um óculos 3D e, pela montagem, forja o efeito Pulfrich para sugerir desconfianças no ato de ver; para borrar a vista e criar uma névoa num ambiente tridimensional. Com ele, o 3D torna-se opaco.

Os pêndulos imagéticos de Ken Jacobs acabam por criar uma disparidade espacial de objetos em movimento e por isso The Guests é um filme em que o espaço não é uma projeção, mas uma invasão. É como se os fantasmas imagéticos filmados por Lumière criassem volume, forma, força. Trata-se de um filme escultural. Aos poucos, entre um pêndulo e outro, entre a vertigem ontológica da imagem, obtém-se a sensação de que não são os espectadores que observam aqueles fantasmas, mas o exato oposto: somos observados na outra esfera do cristal do tempo. Essa disparidade espacial de The Guests apropria-se da ‘sobrevivência das imagens’ (Nachleben) tal como Aby Warburg descreveu. No entanto, Jacobs ainda adentra um debate sobre um cinema que abole a dinâmica da perspectiva renascentista e cria uma forma de organização sensível da imagem, que nega a projeção original ou seu ponto de fuga fundante. Em The Guests, inverte-se o ponto de vista. O cubo da imagem espacial cinematográfica gira 180 graus e coloca em perspectiva a própria perspectiva.

É nesse recorte, inclusive, que podemos comparar The Guests com Cathedrals of Culture (2014), projeto coletivo coordenado por Wim Wenders com o qual vários outros diretores que contribuem, que prima por documentar salas de concertos, bibliotecas, prisões e outras maravilhas arquitetônicas. Embora seja um filme heterogêneo, há, de modo geral, a afirmação de uma contemplação clássica, de uma forma de ver que insere o espectador como se realmente visitasse aqueles lugares. O espaço, nesse 3D, é profundamente renascentista, embora eivado por tons cult de uma estética contemplativa.

Cathedrals of Culture (2014), Wim Wenders

Cathedrals of Culture (2014), Wim Wenders

The Guests, ao contrário, destila desconfianças. Por um lado, há um pêndulo que assemelha-se a um ritmo hipnótico. Por outro, há momentos em que se percebe a hipnose e entramos num jogo inconsciente entre as imagens que vemos e projetamos. Diferentemente do que aparenta, The Guests não é um filme conceitual, mas sim extremamente confiante da força e da experiência que propõe. Nessa chave, cada espectador constrói sua própria relação com a obra, com aquelas imagens, com aqueles instantes. Na Berlinale, uma outra experiência em 3D de Ken Jacobs podia ser vista na exposição do Forum Expanded, na St. Agnes, em Kreuzberg. Na obra A Primer in Sky Socialism, o que se vê são imagens que captam, com uma câmera 3D, as ruas de Nova York: transeuntes subexpostos, carros que passam. Mais uma vez, são borrões, manchas, deformações da perspectiva que negam um afã hiperrealista da imagem cinematográfica, seja 3D ou 2D, para voltarmos a ver com olhos de criança.

The Guests lida de forma totalmente inusitada com o arquivo que é (e foi) a gravação do casamento dos irmãos Lumière. No entanto, a atualização desse arquivo passa além de um novo olhar ou de uma interpretação diferente frente a fonte primária. Ali, não há hermenêutica, mas um pecado (bem) original. Ao inserir a técnica 3D e adicionar o revés do efeito Pulfrich, ao ir contra ela, Ken Jacobs acaba por criar fendas e rachaduras na ontologia midiática da filmagem dos Lumière. Sua atualização é o contrário de uma arqueologia. Mais do que estético, esse gesto é herético, de um desrespeito salutar. Por isso, ao final dessa experiência sem precedentes, sentimo-nos brindando à vitalidade das nossas retinas enquanto, distante e resguardado, Ken Jacobs nos saúda com suas minúsculas heresias visuais.

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