The Green Jacket (Zelena Kofta), de Volodymyr Tykhyy (Ucrânia, 2013)

junho 6, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

greenjacket

Flauta sem som
por Raul Arthuso

O mal-estar urbano parece ser um dos temas de maior interesse para cineastas em tempos como o atual, no qual as contradições do neoliberalismo se tornaram transparentes, mas as soluções ainda turvam o horizonte do possível. Se este mal-estar pode se desdobrar em violência pela via social – o banditismo e a guerra do tráfico de drogas, no caso brasileiro -, o lado moral dessa violência tem sido representado insistentemente pelo cinema contemporâneo, seja para fins políticos – como em Trabalhar Cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra – ou simplesmente para discutir uma possível patologia, resultado da vida urbana atual na subjetividade das personagens, como Estudante (2012), de Darezhan Omirbaev.

Em The Green Jacket, de Volodymyr Tykhyy, esse ideal de representação já se apresenta na primeira cena: uma adolescente segura uma flauta transversal em posição de tocar o instrumento, mas, paralisada, observa algo pela janela. Ela não toca, mas também não desiste do instrumento até ser interrompida pela chegada do irmão mais novo. A impossibilidade é, então, colocada como tônica do filme. Adiante, Olia leva o irmão mais novo até o parque e, num momento de distração, ele desaparece, iniciando a trajetória de perdição da garota: desconfiada de ter visto o suposto sequestrador, ela persegue o homem e sua família, infligindo uma violência psicológica crescente até o momento em que ela explode como vingança. A força de atração do filme está em tensionar os limites em que esse mal-estar passa da psicologia para a ação física, geralmente filmadas em um plano apenas, como se cada plano fosse um laboratório para observação das consequências dos passos dados por Olia.

Contudo, The Green Jacket é de uma escassez de expressão contraditória enquanto representação. Tudo no filme é realizado numa chave de naturalismo em tom menor, com atuações contidas e uma câmera que se comporta com austeridade, colocada no lugar certo para resolver a cena (o que é notável como realização). Esse naturalismo manifesto, porém, esfria os sentimentos e sensações do filme. O clichê dos eslavos como um povo frio, avesso a sentimentalismos, só é reforçado após a projeção de The Green Jacket: mesmo uma situação extrema – o sequestro de um familiar ainda na infância – não movimenta reações desmedidas ou fora do tom desse naturalismo low key construído pela câmera.

No caso, a distância da câmera é o ponto mais evidente dessa contradição. A questão da “forma justa de filmar” é central numa moral do cinema, e, em The Green Jacket, é perceptível como a câmera sempre se afasta, desvia, ou se posiciona atrás de alguma elemento, criando uma barreira entre a lente e as personagens, sempre que há expressa possibilidade de demonstração de sentimento. Olia sai com seu pai de casa e a câmera os acompanha até um ponto em que se detém, enquanto as personagens se afastam. Ao afastarem-se o suficiente, a menina abraça seu pai sem qualquer explicações, num lapso de sentimento que destoa do restante do filme. À distância, porém, não há nada mais que uma fagulha, uma ação dada a ver, que tira a carga – literal – de aproximação com a protagonista. The Green Jacket é feito desse jogo de aproximação na calmaria e afastamento na tempestade, com Olia de costas para a câmera num momento de choro, a mãe em desfoque no segundo plano da imagem, o cabelo em frente ao rosto, ou ainda, como na cena da entrevista com uma psicóloga, a câmera rodeando Olia e se aproximando aos poucos até cortar para o único close em que o sentimento mais profundo escapa. A câmera se comporta como se dotada de uma moral de manutenção de um “grau máximo” de afetividade, bloqueando ou interrompendo qualquer intromissão de desmesura acima dele.

Resulta disso a sensação ambígua de que, ao mesmo tempo em que levanta a possibilidade de a trajetória de Olia ser fruto de psicose, o filme não penetra a fundo na discussão dessa possibilidade, evitando tornar palpáveis a psicologia ou as sensações intrínsecas à protagonista, realizando um filme que é mais sobre si mesmo do que sobre a personagem. Nesse sentido, The Green Jacket se aproxima da obra recente dos irmãos Dardenne, em que o estilo se sobrepõe às narrativas, deixando a impressão de que os filmes existem para sustentar uma forma pré-estabelecida e o universo filmado é apenas um recorte genérico, abduzido pelos cineastas. A diferença crucial é que, enquanto os irmãos Dardenne se tornaram uma grife reconhecível – e, portanto, sua recepção crítica já parte de uma base bastante clara, o que por sua vez também pode ser um problema incontornável – The Green Jacket permanece num terreno de generalidade, cujo procedimento denota um apego pela “distância segura”.

Olia e sua mãe são musicistas que nunca tocam – o paquera da adolescente não tem uma relação de afeto com ela, a melhor amiga não oferece ajuda quando ela está em perigo… os sentimentos internalizados nunca despertam. No final do filme, quando a violência, a raiva e o medo finalmente explodem, o filme se entrega a seu retrato e mostra-se inábil na forma mais justa de filmar – com uma imagem final que é tão risível que coloca em risco tudo que veio antes. É como Olia, que sabe tocar, mas não emite nenhum som de sua flauta ao longo do filme; a flauta só soa quando não há mais imagem para comprometer sua existência.

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