Tale of Tales (Il racconto dei racconti), de Matteo Garrone (Itália/França/Reino Unido, 2015)

maio 14, 2015 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

Cobertura do Festival de Cannes 2015

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Cannes 2015: cobertura por um ex-crítico
por Eduardo Valente (colaboração especial)

Claro que o título do post é jocoso. Se acreditarmos que “ser critico” é um estado, ou ainda, um ofício, muito mais que uma prática, nunca se pode deixar de ser um, uma vez tendo sido. No entanto, o desejo (ou mesmo a necessidade) de explicitar essa condição de “ex” logo na saída do que poderá vir a ser esta “cobertura” (as aspas se explicam no próximo parágrafo) tem uma motivação dupla. Primeiro, a de relembrar que a falta do exercício constante da atividade certamente deixa suas marcas, que estarão por todos os lados aqui: na escrita, no estilo, mas principalmente na falta do hábito de olhar os filmes pelo viés da crítica – todas coisas que fazem diferença ao se “re-exercitar”. Mas, segundo, e talvez mais importante, porque nem na duração deste Festival poderá ser o trabalho do crítico a principal ocupação de quem escreve essa cobertura – já que é através de um outro trabalho que se vem ao Festival, e que a crítica poderá surgir apenas nas franjas desse trabalho.

Por isso, então, a cobertura assim, entre aspas: quem se acostumou há alguns anos (em 2003 e 2005 na Contracampo, entre 2006 e 2011 na Cinética) a ler minhas coberturas de Cannes precisa saber que esta será bem diferente. Primeiro, no formato, que migra do texto pros posts (menos um sinal de uma época, e mais de uma condição mesmo de tempo disponível pra escrita). Mas, muito mais importante, no acesso aos filmes: nas vindas como crítico em 100% de dedicação, se podia escolher e priorizar recortes na programação, cineastas, seções. Neste ano, se verá o que estiver disponível nos horários em que se está livre. Em vez da media de 5 filmes vistos por dia, serão em geral 2, 3 nos dias de muita sorte. Assim, eventualmente filmes centrais não serão vistos, e conclusões globais serão muito parciais. É o jogo que há pra ser jogado, e o desafio será fazer o melhor dele. Vamos a ele.

Tales of Tales (2015), Matteo Garrone

Tales of Tales (2015), Matteo Garrone

Um cinema totalmente diferente, um mesmo cineasta

Cannes é um dos festivais mais afeitos a voltar a alguns cineastas, especialmente nos casos em que é aqui que ele é “revelado pro mundo”, por assim dizer. Por isso, nenhuma surpresa de ver este Il Racconto dei Racconti na competição, depois da celebração que encontrou Gomorra, do mesmo Matteo Garrone, em 2008. Curiosamente, na ocasião eu fui uma das poucas vozes discordantes a não se empolgar com aquele filme. No texto, um apelo por uma maior fabulação da ficção cinematográfica em vez do desejo documental travestido em ficção – tendo como foco a origem jornalística do livro original.

Parece, portanto, quase programática a opção de Garrone neste novo filme, lançado sete longos anos depois. Afinal, é de fábula explicitamente que se trata Il Racconto dei Racconti, adaptação livre de uma obra italiana do século 17 que é considerada uma das fontes principais, por exemplo, dos trabalhos de Perrault e dos irmãos Grimm. Mas não é apenas no registro (de realismo absoluto para a fábula desbragada) que Garrone gira quase 180 graus. Enquanto Gomorra era fortemente enraizada no espaço onde se passava (a Sicilia), esse novo filme assume a forma do “lugar nenhum” (são reis e rainhas de reinos sem nome, que falam todos em inglês, mesmo havendo atores americanos, mexicanos, franceses, espanhóis, italianos).

Quanta ironia, portanto: depois de pedir explicitamente fabulação, agora o crítico vai pedir chão, terra. Mas talvez o problema seja menos de esquizofrenia de quem escreve (embora possivelmente também o seja), e mais da forma unidimensional com que Garrone parece encarar seus projetos e registros. Assim como em Gomorra tudo parecia precisar gritar verossimilhança e pesquisa, aqui tudo precisa ser sublinhado como conto fabular – a trilha de Alexandre Desplat, beirando o insuportável, talvez seja o mais simples indício, mas está longe de ser o único. Embora a escolha de elenco e desse “inglês fabular universal do cinema” como língua no filme sejam com certeza uma escolha que tem mais a ver com produção e mercado, até se poderia ver na opção uma piscadela de olho ao suposto domínio do “conto de fadas” pela indústria hollywoodiana. No entanto, o principal efeito disso no trabalho dos atores é uma enorme empastelada que se aproxima menos de uma língua específica (o inglês) e mais de um registro (um “fabular for dummies”).

Curiosamente, uma breve pesquisa sobre o material que dá origem ao filme revela que um dos principais elogios que os Grimm lhe faziam era sobre a sua capacidade de dar uma cor local às fábulas, usando uma poética do dialeto siciliano que dava um tom todo particular ao relato. Pois, tudo que o filme de Garrone não é, é particular. Parece, então, que a questão de fundo de seu filme é menos de realismo ou fabulação: trata-se principalmente de um esforço de emular ao máximo a competência de um registro, tornando-o o mais genérico (e, portanto, simploriamente detectável) possível. Bom, quanto a isso resta dizer: missão cumprida.

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