Ta’ang, de Wang Bing (Hong-Kong/França, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

* Cobertura do 5o Olhar de Cinema

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Uma câmera-ouvido
por Victor Guimarães

Como em A Oeste dos Trilhos (2003), somos apresentados ao mundo do filme por duas cartelas iniciais, lacônicas: na fronteira com a China, uma minoria étnica é obrigada a deixar a Birmânia e refugiar-se em território chinês por conta da guerra civil que estala no país vizinho. A partir daí, acompanhamos o deslocamento em massa dessa multidão pedestre, entre as brincadeiras das crianças e as conversas das mulheres à beira da fogueira; entre armar as barracas e cortar a cana chinesa por um salário de fome; entre a fuga através das montanhas, os telefonemas para os parentes desaparecidos e a invenção de uma comunidade provisória de nômades por destino trágico.

Wang Bing pratica um cinema da companhia. O maior herdeiro do cinema vivido de Pierre Perrault não é um entrevistador, nem uma testemunha, nem um observador, mas alguém que acompanha. Seus filmes – e este Ta’ang é exemplar nesse sentido – têm a virtude rara de instalar o espectador na densidade de um mundo humano, no interior do qual viveremos por horas a fio – que parecem meses –, aprendendo plano a plano os gestos, o contorno dos rostos, a entonação das vozes, e compartilhando pouco a pouco as angústias, a fundura do medo, o som da alegria incansável. O quadro não é um organizador de um mundo fechado, mas um abrigo provisório para uma multiplicidade que sempre vaza em todas as direções. A montagem não dialetiza a fórceps, mas se dedica, pacientemente, a modular o tempo e a fazer emergir relações da matéria filmada. É preciso tempo para que a convivialidade venha se instalar também na sala de cinema, onde alguém come pipoca sozinho enquanto as figuras na tela compartilham o parco arroz de cada dia.

Nem a distância da análise, nem a proximidade obscena da dissecação. Desconfio que o zoom da câmera de Wang Bing não tenha sido usado uma única vez em toda a sua carreira. Se alguém se desloca para cortar cana ou para fugir das bombas que se aproximam no horizonte, é preciso caminhar junto, ir ao encalço, fazer travellings com a câmera na mão na estrada de terra. Se um grupo de crianças passa a habitar o quadro, é preciso se agachar para estar à altura de seus olhos, como em Três Irmãs (2012). A beleza exige trabalho, e só a paciência diante de uma visualidade que às vezes parece homogênea – não há aqui a intensidade dramática de Sozinha (2012) ou a exuberância de Traces (2014) – é que permite o surgimento insuspeitado da silhueta de uma menina, que se destaca como uma figura fugidia sobre o horizonte trêmulo e incandescente de uma enorme fogueira distante.

O mesmo se passa com o som: a ausência de música externa ao plano, a sincronia estrita e o direto inarredável é o que fazem com que a conjunção entre ruídos e vozes componha uma aglomeração sonora sempre inquietante. Em Ta’ang, o dia é o tempo das vozes multitudinárias que engendram uma massa sonora superpovoada e proliferante; a noite revela os silêncios do recolhimento, o choro contido e as histórias trocadas à beira da fogueira. Só num filme tão aberto às sonoridades duras e difusas é que o advento brusco de um momento de silêncio aquecido por uma canção no rádio pode nos retirar da banalidade e inaugurar um clima novo.

Nem a câmera-caneta de Astruc, nem a câmera-olho de Vertov, nem a câmera-toque de Dwoskin: a de Wang Bing é uma câmera-ouvido, membrana sensível às vibrações circundantes. Nem a orquestração dos deslocamentos no quadro, nem a onipotência do olho mecânico, nem a tactilidade da imagem-corpo: diferente do pensamento, a audição resiste ao cálculo; diferente da visão, demanda cercania; diferente do tato, não suporta a aderência. Os ouvidos têm dificuldade em hierarquizar as falas, e por isso não há saída senão se abrir à imprevisibilidade das vozes: Wang Bing não é um gestor do movimento dos corpos, mas um ouvinte atento ao alvoroço das vidas Os ouvidos não têm pálpebras, e por isso não são capazes de interromper o fluxo da percepção: sua câmera é essa que se interessa pela aleatoriedade dos seres e pela espessura das coisas vivas, como a correria das crianças ou a resiliência das mulheres. Os ouvidos padecem diante do excesso de proximidade, e por isso precisam se afastar um pouco para perceber melhor: Wang Bing é aquele que se instala nas adjacências daquilo que queima, que está sempre perto o bastante para acompanhar a caminhada e compartilhar a comida, mas longe o bastante para não escutar a conversa íntima da mulher com o marido ao telefone.

A câmera-ouvido é essa capaz de inventar um território de vizinhança, de fazer com que o espectador possa, também ele, habitar as cercanias de um espaço e a contiguidade de um tempo. Em Ta’ang, esse tempo é o da espera: não há reviravoltas narrativas (Três Irmãs), nem acúmulo (A Oeste dos Trilhos), nem retorno ao passado (A Vala, 2010); os refugiados não ocupam apenas um espaço fronteiriço e indefinido, mas residem num limbo temporal em que nada é permanente e tudo é incerteza. É essa espera plena de ansiedade – mas sem perspectiva alguma de futuro – que Wang Bing nos convida a ouvir com os olhos e ver com os ouvidos. Na sequência final, quando o ruído ameaçador das bombas e das rajadas de metralhadora se torna mais e mais forte, a multidão se detém em uma estrada, perscruta o horizonte, mensura as consequências da decisão de ficar ou partir. Sempre na companhia das mulheres e das crianças, nós também ficamos à espera, a auscultar as montanhas à vista, a adivinhar no gesto fugidio o barulho da hesitação.

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