Still the Water (Futatsume no mado), de Naomi Kawase (Japão/Espanha/França, 2014)

maio 24, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

Still the water 3

A pele da morte, ou a textura da transcendência
por Pablo Gonçalo

São poucos os diretores que filmam o vento com maestria. Lembro das folhas esvoaçantes de Béla Tarr; do sopro que crepita entre as folhagens campestres, na água, e nas velas conduzidas pelos personagens de Tarkovski; no vento sonoro e material de Straub-Huillet; nas tentativas e frustrações típicas de Ícaro na última animação de Hayao Miyazaki; ou, ainda, o vento que insufla as paisagens de Abbas Kiarostami. A lista seria longa, e certamente, sempre com lacunas. Com Still the Water, contudo, Naomi Kawase surge como uma figura eminente dessa possível constelação. Presente na competição de Cannes, o filme começa com ondas gigantes sopradas por um zéfiro furioso. São ondas quase palpáveis, envoltas por uma superfície próxima e sensível, e encadeadas por um ritmo que, de tão pujante, sugere um transe. Em seguida, vemos um ritual e Isa (Miyuika Matsuda) entrando numa comunicação com o cosmos que certamente é distinta das pessoas normais e foge do cotidiano.

Isa é uma xamã que mora na ilha Amami-Oshima, na costa subtropical japonesa. Ela está feliz por perceber a proximidade da morte. Sim, nessa ilha, Kawase retrata um povoado que não vê a morte de uma maneira negativa (e aqui vale uma menção de semelhança ao último episódio de Sonhos, filme de Akira Kurosawa, lançado em 1990); pelo contrário, haveria, para eles, nesse instante de despedida da vida uma completa e desejável integração com a natureza. Num dos diálogos elucidativos do filme, Tetsu (Tetta Sugimoto), o marido de Isa e pai de Kyoko (Jun Yoshinaga), lê a morte como a última, mais forte, vibrante e bela onda de uma sequência que atinge a praia. A frase faz lembrar da cena inicial de Still the Water, e é o que vemos: um vento que embala a onda do fenecimento. Quase como uma entidade, o vento parece perambular pelo filme todo, pulsando com um afã poético, e é pelo ar, dentro e fora da água, o ar da passagem, que Naomi Kawase convida os espectadores a vislumbraem as ranhuras do invisível.

Still the water 2

Embora Kawase seja malsinada como uma diretora new age, seu filme foca mais naquilo que fica, no fardo telúrico do mundo, do que nos elementos metafísicos que especulam e forjam uma transcendência. Aliás, sobre o mundo após a vida nenhum habitante da ilha ousa falar. Calam-se. Não é por acaso, nessa leitura, que a narrativa aproxima-se mais de Kyoko e Kaito, os dois jovens habitantes que herdarão o mundo – físico, material, sensível – do que os indivíduos que estão de partida. Aos poucos, Still the Water transforma-se num filme de descobertas. Revela-se a força da vida, um primeiro amor, os discretos e enigmáticos prazeres do sexo, da luz e de outros fenômenos naturais que circundam o dia a dia da ilha. Também descobre-se, por outro lado, a própria morte. Olha-se a morte frontalmente, seja quando o ancião mata um animal com uma navalha no pescoço, seja na maneira meiga e contemplativa que se observa a morte da própria mãe.

De alguma maneira, Still the Water encara, com rara sutileza, esse ato de olhar o olho da morte, ou, se quisermos, de uma morte enigmática que aponta para outro lado. Extremamente corporal, o filme parece conduzir para vermos a casca da morte, aquilo que fica na superfície, como o corpo que deixa de ter um sopro, mas que resta, que queda, que fica. Por isso, talvez, Kawase filme tantas vezes os corpos dentro, entre e fora da água. A água aqui torna-se a principal metáfora da vida, e é na relação com a água ou o ar, entre o dentro e fora, que os corpos, sempre opacos, mudam, transformam-se. Se a própria diretora não ousa falar da transcendência, num sentido mais corporal do que metafísico, ela quer senti-la, quer perceber e filmar os vestígios, os rastros desse ato de passar além. É nesse sentido, ainda, que a bolha de água que atravessa o oceano para atingir o céu ganha uma preciosa concisão poética, digna dos melhores momentos de Limite (1931), de Mário Peixoto.

Trata-se de uma narrativa epidérmica, que registra as lascas do tempo, como um vento que dispersa as areias de uma ampulheta. Em termos dramáticos, Still the Water é um filme que oscila, mas certamente não é entre os traços de uma história que se percebe a vocação de Naomi Kawase – pode-se, inclusive, ler a sua encenação como ingênua. Contudo, em Still the Water tenta-se captar uma certa pureza e ingenuidade dos seus personagens, da ilha, da passagem, do mundo, da vida e da morte. Busca-se filmar essas passagens no seu estado mais puro. Seus melhores gestos são os poéticos. Como a água, como o vento, vê-se, nas poéticas sequências de Still the Water, uma cinematografia cristalina.

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