Spring Breakers – Garotas Perigosas (Spring Breakers), de Harmony Korine (EUA, 2012)

outubro 7, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

springbreakers

Plenitude e a glória do triunfo
por Pedro Henrique Ferreira

Parafraseando o influente ensaio de Robert Warshow intitulado O gangster como herói trágico, o sociólogo português Eduardo Geada expõe um dos sentidos fundamentais do gênero à época de sua gênese em meados de 1920: “na sociedade democrática, em que a cultura de massa está voltada à propagação fútil de imagens de optimismo e de esperança, o filme de gangsters representa o sentido moderno da tragédia. O criminoso tem de morrer no final porque, depois de chegar ao topo do poder, da fortuna e da corrupção, já não tem lugar para onde ir. A atividade feroz e implacável do gangster é um exemplo típico da história de sucesso num mundo onde impera a lei da selva urbana: ele liquida sem contemplações todos os obstáculos que o podiam impedir de triunfar na vida. Morto entre sarjetas e caixotes de lixo, o gangster é uma figura trágica da modernidade capitalista porque morre justamente no momento em que celebra a glória do triunfo, pondo em causa o mito do sonho americano”.

É consenso que a obra que inaugura o gênero é Underworld (1927), de Sternberg, mas, segundo Geada, foram necessários mais cinco anos até que viesse à tona o seu envio histórico, aquilo que o gênero de maior longevidade no cinema norte-americano tinha a dizer. Isto acontecera em Scarface – A Vergonha de uma Nação, de Hawks. Foi um dos poucos filmes inicialmente censurados pelo escritório Hays, em parte pela falta de animosidade do órgão para com o produtor independente Hughes, mas principalmente porque o filme revelava aos Estados Unidos uma face de si mesma que o país não queria ver (e daí o seu subtítulo na tradução brasileira). Mexia com os desejos inconscientes de seu povo e pintava como carismática uma figura sem escrúpulos alguns: “Camonte é um personagem destituído de qualquer qualidade redentora passível de introduzir a sombra do arrependimento ou a mensagem de que o crime não compensa. O que nós vemos ao longo de toda a história é a alegria infantil e animalesca de Camonte na sua vertigem de ascensão social como único fator de conduta individual.”

Spring Breakers – Garotas Perigosas, de Harmony Korine, reverencia a adaptação que Brian de Palma realizou do clássico do gênero em meados dos anos 1970. Como inúmeros outros personagens nos últimos anos, o traficante e rapper Alien (James Franco) tem emoldurado um cartaz da obra em seu quarto, e diz ter o célebre personagem de Al Pacino como ídolo e inspiração. Além disso, é também a cidade de Miami que é utilizada como cenário. Mas, com exatos oitenta anos de diferença, o quarto longa-metragem de Korine firma discussões ideológicas que têm muito mais a ver com o original. Ainda que, bem, não seja a estrito senso um filme de gângster.

É quase inútil se debruçar sobre a posição polêmica, o tratamento demasiadamente conivente do diretor com seus personagens, como vem fazendo boa parte da crítica brasileira e internacional. Em certo sentido, desqualificar o filme por este viés é reestabelecer a discussão do escritório Hays sobre Scarface: é possível ou não que uma figura como esta não seja condenada? Cabe-lhe um fim trágico ou feliz? Ficamos presos à superfície mais rasa, mais personalista, mais moralista possível, e ignoramos o que pode nos adicionar e aprofundar o posicionamento inquebrantável do diretor.

É um clichê em voga dizer que todo filme com personagens jovens é um retrato de um universo geracional, mostrando seu comportamento e suas aspirações íntimas. Quem mantiver o olhar unicamente sobre o tema e o desenho das figuras, ignorando em absoluto a forma como se narra e os mecanismos estéticos disparados por esta forma, será tentado a incorrer neste equívoco. O problema é que não há um livro de sociologia entre o autor e suas meninas. E se o produto final nos revela algo sobre o tema, é unicamente de modo retroativo.

Em muitos aspectos, Spring Breakers – Garotas Perigosas se aproxima de um filão do cinema contemporâneo que trabalha a narrativa como um fluxo contínuo de imagem e voice over, em um formato elíptico, esfacelado, misturando acontecimentos objetivos a reflexões individuais, em um formato popularizado nos anos noventa por figuras como Wong Kar-wai e Hou Hsiao-hsien. Mas, comparado a estes cineastas, o tratamento polifônico do longa-metragem de Korine se interessa menos pelos personagens, e opera em um nível mais etéreo, semelhante às “Ondas” de Virgínia Wolf e outros trabalhos literários do início do século XX. Ao mesmo tempo, se há a polifonia, esta parece almejar um ímpeto de totalidade muito mais recente, de uma sensibilidade que o põe lado a lado a Aranofski, Malick ou Von Trier – são obras em que, como Fábio Andrade bem definiu em crítica sobre A Árvore da Vida, “a história pessoal pertence e dá continuidade a uma história do universo”. O sentimento é religioso, pois espiritualizado, mas ao mesmo tempo, profano, pois individualizado. A sensibilidade é, sobretudo, uma sensibilidade protestante.

As semelhanças que o longa-metragem de Korine tem para com obras polifônicas, diáfanas e monumentalizantes como estas é ainda mais profunda. Encontramos nas imagens hipnotizantes em slow motion dos corpos seminus de jovens a celebrar na praia, aglomerados pela trilha sonora eletrônica de Skrillex, uma pretensão semelhante aos big bangs em CGI, imagens siderais à la National Geographic, ou aos seres microscópicos de A Árvore da Vida. Isto é, a pretensão de realizar em uma única imagem a representação de um cosmos inominável, total e pleno – uma espécie de paraíso extraterreno – é o tal “spring break”, evento anual na cultura norte-americana em que os jovens viajam para enlouquecer nos litorais do país. Curiosamente, o feriado no calendário que justifica o fenômeno é a Páscoa.

O paralelo entre o spring break, o paraíso cristão, e o sonho americano é repetido inúmeras vezes, pelas mais diversas vozes que compõem o mosaico do filme. São as imagens da plenitude em um “poema pop”, para citar a expressão do diretor, em um arcabouço criado pela indústria cultural de massa e sua fiel aliada, a publicidade, que povoa o imaginário dos jovens e os indica um modelo ideal daquilo que devem almejar ser e viver. Neste sentido, apesar de não ser a priori um filme de gângster, assim como o Camonte de Hawks, as meninas de Spring Breakers – Garotas Perigosas ultrapassam sem escrúpulos qualquer norma de moralidade para realizar o grande sonho injetado, descortinado, apontado para elas, um sonho elaborado por toda uma ampla trama publicitária sob a qual elas foram educadas. O trajeto delas poderia repetir o lema final de oitenta anos atrás: “o mundo é todo seu”.

Neste riquíssimo entrelaço, Korine consegue, com muita habilidade, unir duas trajetórias que seriam essencialmente opostas: de um lado, a pecaminosa, que envolve assaltos, nudez, alcoolismo, drogas, e muitas outras formas profanas; do outro lado, a sagrada, que envolve a busca pela experiência religiosa. As meninas saem da cidade pacata onde só enxergam imobilidade para tentar encontrar aquele paraíso idílico onde as coisas fazem sentido, onde se sentem vivas. É ao mesmo tempo uma jornada de decadência balzaquiana do homem do interior na cidade grande, mas também uma saga migratória de um povo rumo à terra sagrada. E, rigorosamente falando, estamos diante da mesma saga, pois a publicidade, a indústria cultural, o capitalismo, e em última instância, o espírito americano e protestante teriam engendrado este estranho paradoxo.

O gesto se espalha pela obra. Imagens de bundas rebolando, mulheres tirando o sutiã e rapazes cheirando cocaína vêm acompanhadas da voice over de Faith (Selena Gomes) em uma ligação telefônica, contando à avó como ela encontrou pessoas bacanas e está vivendo momentos supimpas, inesquecíveis, em um local onde se encontrou e queria viver para sempre. O rapper Alien descobre o quão genuíno é o amor que sente pelas meninas quando elas colocam os canos de revólveres em sua boca e o fazem chupá-los. A operação é semelhante à de Malick ao criar “a imagem e, junto dela, expor o processo de pensamento que ela dispara em quem a observa”. Mas à palavra ou pensamento do sagrado, adiciona-se a imagem do profano (e há coisa mais reformista?).

Assim, Korine dribla a representação fácil, que almeja explicar o inefável por uma vestimenta pronta produzida em uma loja de departamento, e realiza uma das obras em fluxo mais interessantes até hoje, um dos filmes mais religiosos destas últimas levas do cinema norte-americano. Ao reunir, na polifonia de inúmeros personagens, as mesmas metas, os mesmos anseios e destinos, o diretor torna superestrutural e coletivo este gosto por uma certa cultura física, violenta e insana, um gosto disseminado pelo poderio da publicidade em quase cem anos do american way of life, e a imagem do que é o seu resultado final, isto é, o seu resultado mais contemporâneo. Mas seu verdadeiro salto está em notar que, ainda que o sonho tenha sido inventado, implantado em seus corações desde a infância pelos desenhos animados da Disney, e que, para um observador externo, ele possa parecer condenável em todos os sentidos possíveis, na alma de cada uma daquelas personagens, no âmago de suas intimidades, realiza-lo é a experiência ascética final, a plenitude epifânica. E esta experiência cristã por excelência precisa ser levada à sério.

Não estamos sob a égide do monumento wellesiano, cujo destino é sempre a decadência, a tragédia daquele que quis muita areia para o caminhãozinho. O que vemos, por oposição, é a glória absoluta (e é justamente o que incomoda muitos que suplicam que ele condene suas personagens ao fracasso). O tom de temor e ameaça, que deixa o espectador aguardando um gatilho violento ou algo que prove que a busca das heroínas é necessariamente trágica, nunca chega a se concluir. Korine parece querer deixar as meninas terem a possibilidade de viver eternamente o spring break, para depois voluntariamente abandoná-lo e retornar à casa. O tom é ameno e, por mais que empunhem armas e realizem assaltos, elas vivem uma desconcertante forma de amor, cantam ao piano da forma mais singela possível uma versão acústica de uma canção de Britney Spears. Não há mais o sagrado e o pródigo, apenas pessoas vencendo o medo de realizar, ao limite concebível, aquilo que uma cultura formada por anos e anos de história as mandou fazer.

Afirma-se a possibilidade última de representação: a cada época, uma sociedade cria sua própria imagem do que é a beleza e a perfeição, e esta pode ser desenhada em todas as suas nuanças (não é necessariamente fugidia, inapreensível, como seria no cinema de Mekas), conquanto que seja adequada a seu contexto, que não seja tomada eternamente como simbologia. Coloca-se ela ante nossos olhos, de forma semelhante à que Hawks nos colocou no princípio do gênero (e, lembrando, Spring Breakers – Garotas Perigosas não é um filme de gângster tanto quanto um filme de wanna be gângster, o que por si só diz muito de seu verdadeiro tema). É a fábula espiritual de Páscoa do moderno se, por moderno, podemos entender justamente o destino do espírito protestante.

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