Sono de Inverno (Kis uykusu), de Nuri Bilge Ceylan (Turquia/Alemanha/França, 2014)

agosto 12, 2015 em Em Cartaz, Raul Arthuso

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Vazios e cheios
por Raul Arthuso

Em texto sobre Era Uma Vez na Anatólia (2011)apontei um “desejo de contar”, um impulso para a narrativa de forma mais incisiva que se diferenciava da obra anterior de Nuri Bilge Ceylan. Especialmente até Climas (2006), a tônica de seus filmes era exatamente a oposta: não narrar, mas sim criar atmosferas, dramas construídos a partir da insinuação de emoções, dedicando o olhar a deslocamentos no espaço, gestos e interação dos corpos. Dentro do contexto do cinema contemporâneo – espaço onde essas estratégias se tornaram valores positivos quase unânimes para a cristalização de novas grifes autorais – Ceylan era uma espécie de versão atualizada e difusa da incomunicabilidade dos anos 1960. Por sua vez, se Anatólia trazia de novidade a seu cinema um desejo de mais drama, Sono de Inverno se volta completamente para ele.

A começar pela organização do filme em torno de um protagonista, que conduz a narrativa: Aydin, um rico senhor de terras de um antigo vilarejo agrário na Turquia, dono de um hotel pouco movimentado, onde mora com sua irmã divorciada, sua esposa – muitos anos mais nova que ele – e seu capataz. O filme todo se resolve no retrato de Aydin e sua vivência no espaço da grande casa onde passa a maior do tempo, alguns conflitos com a comunidade local, locatários de suas propriedades herdadas de muito tempo; e principalmente nos embates cotidianos com as duas mulheres de sua convivência. Desde cedo fica armado um grande “universo” de diversos cenários onde se desenrolará uma trama, num conjunto de longos blocos de ação, muitas vezes no mesmo espaço, e nos quais a palavra, e, principalmente, as ideias de Aydin conduzem as opções de mise en scène. Por girar em torno dessa personagem, grande parte da energia dispensada no filme está em dar contornos ao protagonista, criar contradições, psicologia e profundidade dramática ou – como se fosse sinônimo de tudo isso – humanizá-lo. Está em jogo, na maioria das situações, descolar a figura de Aydin de sua construção como uma personagem dramática: ações que neguem suas palavras, gestos que problematizem as idéias que estão nos muitos artigos que escreve para um jornal local e são lidos ao longo do filme, diálogos que o transformem numa “contradição ambulante” (expressão que serve tanto para caracterizar o Marcelo de A Doce Vida quanto o Travis Bickle de Taxi Driver).

Ceylan investe em preencher a história com temas, joga armadilhas para a personagem cair, e o filme aborda uma série de ideias intangíveis que a construção visual não parece dar conta: moral e consciência, especialmente; ordem; autoridade; religião; filantropia; bondade; amor. Sono de Inverno transita boa parte de seu tempo no reino das ideias, e as ações de Aydin estão fundamentalmente  na impossibilidade de realizá-las concretamente. Esse jogo de cartas marcadas só pode resultar em contradições. Se Ceylan consegue construir o espaço da casa como uma prisão, especialmente no plano final da paisagem quando o caráter de masmorra que prende e isola as personagens fica realçado, os outros “símbolos” da trama, como o coelho prestes a morrer, o cavalo branco enlaçado ou a relva pegando fogo, são imagens vazias, preparadas para serem preenchidas por qualquer coisas frente à sua falta de potência na costura da obra. Sono de Inverno habita esse espaço da ficção que o tempo todo almeja esconder-se como tal, fazendo um esforço hercúleo para camuflar uma amarração que involuntariamente se revela o tempo inteiro. É um movimento por natureza do drama, mas que revela as fraquezas do filme: é a partir da exposição da personagem a conflitos que ele se dá como drama e expõe sua convencionalidade.

Nesta construção de profundidade psicológica com um ponto de fuga muito claro – a câmera, no último plano antes da cartela de título, com Aydin de costas para nós, faz um movimento de aproximação do cenário para sua nuca até o preto total, como se penetrasse na cabeça da personagem – é forjada uma figura já bastante conhecida no imaginário dos arquétipos de poder: o aristocrata consciente, artista, ator frustrado de teatro que deseja escrever uma história para a posteridade. Aydin ocupa um posto de mandatário local herdado da tradição familiar, mas deseja ser benevolente; encarna a opressão ao mesmo tempo em que se vê como um humanista – admirador da filantropia e das finas artes. É o patrão cordial transposto para o contexto da vila interiorana turca. O procedimento deseja aprofundar, mas redunda numa personagem já decodificada, num drama de decadência e crise existencial também já decodificado na história do cinema.

Sono de Inverno nega o clássico – onde a construção do universo ficcional não precisa em nenhum momento se auto-afirmar, e a ourivesaria da trama completa o próprio processo demiúrgico de criação desse mundo – e ao mesmo tempo nega o modernismo. Os grandes blocos de ação desenrolam-se a partir do texto, em geral em continuidade de tempo e espaço, remetendo à tradição do teatro – arte que Aydin praticara na juventude e é frustrado de não ter sido reconhecido por ela. O gesto, porém, é tímido; parece, lembra, remete, mas em sua tessitura mais profunda não é teatral, não reforça o proscênio ou a performance, fica nos dados mais superficiais do teatro. Sono de Inverno parece a adaptação de um peça inexistente, recalque das transposições teatrais e burilamento do texto de Joseph L. Mankiewicz; e distante, por sua vez, da adoção do palco pelo Coppola de Do Fundo do Coração (1981). O filme é uma versão esquizofrênica de cinema de estúdio, tentando fingir que o espaço é cenário, e a coisa morta tem vida, quando não passa, na verdade, de um recalque do drama.

Diversas das reações a Sono de Inverno citam Tchekhov pela crise existencial da personagem, o drama se transcorrendo no isolamento, com personagens apartados do presente e vivendo substancialmente “de reminiscências e de utopias”, segundo Peter Szondi. Porém, em Tchekhov, a crise da vida trazida no tema espelha uma crise do drama; negar a existência no presente é negar a instância dramática fundamental, o aqui e agora. Nas palavras de Raymond Williams, “Tchekhov é o realista do colapso”. O cinema, com essência dualista de um passado presentificado, serve como expressão quintessencial desse realismo do colapso. Apesar de sua atualidade sempre pulsante, a mise en scène dá a chance de o passado adentrar com os dois pés no presente. Através do figural e do pictórico, passado, História, memória – e também o futuro, a esperança e o desconhecido – causam ressonâncias nos espaços e nos gestos. Essa é lição rosselianiana por excelência, as ruínas presenciais de Paisà (1946) e Alemanha Ano Zero (1948), transformada hoje em um conjunto de cacoetes do que seria um realismo cinematográfico. Em Sono de Inverno não há essa crise fundamental em Tchekhov, nem a contaminação do colapso privado do protagonista na estrutura do filme nem mesmo a negação de qualquer coisa assim. Pelo contrário, existem duas instâncias muito claras: de um lado, as ideias das personagens, suas elocubrações, memórias, anseios e reminiscências; e, de outro, uma encenação forçando gestos e imagens que coloquem as ideias em choque. É o reverso do colapso; é a conciliação. O caso é menos de modernidade – o choque de tempos, desejos e figurações na atualidade da ação como Tchekhov, Welles ou Pollock -, e mais de incapacidade de fatura.

Se as primeiras obras de sucesso em festivais de Ceylan eram de uma desdramatização já matizada no cinema contemporâneo, produzindo um sistema de vazios; Sono de Inverno é um sistema de cheios – do drama total, da profundidade psicológica e personagens demasiadamente humanos, com símbolos, metáforas, diálogos de reminiscências, discussões de política e de temas humanos – mal realizado. A falência do projeto se dá nessa sucessão de falsas profundidades.  As referências claras são o grande cinema (Bergman, Antonioni) e teatro (Tchekhov, Ibsen) de crise, sem contudo arriscar-se a ela. Sono de Inverno é a versão de Fanny & Alexander (1982) pelo ponto de vista do padrasto: se, em Bergman, a estrutura memorialística é fundada nas incidências do fantasma opressor na formação da psicologia das crianças, em Ceylan acompanhamos esse fantasma que oprime tanto conteúdo quanto forma. O gesto fílmico é o mesmo de Aydin em relação ao cavalo domado, o coelho caçado e a relva incendiada: tomar posse e adestrar o selvagem tirando a vida possível desse organismo. Sono de Inverno, como cinema, é um corpo morto.

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