Songs from the North, de Soon-Mi Yoo (Coreia do Sul/EUA/Portugal, 2014)

agosto 17, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

songs

O lugar mais solitário da terra
por Filipe Furtado

Todas as intervenções diretas da cineasta Soon-Mi Yoo sobre este seu filme-diário acontecem com inserções de cartelas pretas com observações sobre o que apreendeu de suas visitas à Coreia do Norte. O uso constante de tais cartelas – e, com elas, uma inserção de uma não-imagem – é muita ilustrativa das intenções de Yoo. Songs From the North afinal se ocupa justamente de lidar com uma não-imagem: a da Coreia do Norte, um país que teve negado o direito de ter sua história contada. O principio é de buscar um contracampo para esta não-imagem inicial, sendo um filme que deseja servir como um corretivo modesto para uma injustiça histórica. Se o governo norte coreano controla todas as imagens do país para um ideal mistificador e se as tentativas de imagens externas são invariavelmente acompanhadas de ignorância, o filme de Yoo tenta produzir um contracampo para ambos e chegar a uma imagem justa de um país.

Soon-Mi Yoo – que nasceu na Coreia do Sul, mas é radicada nos EUA – constrói  seu filme a partir de um encontro entre o material que rodou em três viagens à Coreia do Norte, com uma longa entrevista com o seu pai sobre a separação do país, e material de arquivo – tanto imagens oficiais como de filmes produzidos lá. As viagens de Yoo servem de guia central para o filme, mas resultam numa espécie de filme-diário muito especifico, dominado pela ideia de ficção. Num momento bem revelador, a cineasta acredita reconhecer um espaço; primeiro, ela credita isto às similaridades com a paisagem sul coreana, até perceber que reconheceu o local por conta de documentários da Guerra da Coreia. A anedota diz muito sobre a não-imagem norte coreana que Songs From the North procura circular e sobre suas tentativas de preenchê-la.

Os sentimentos do filme são expressos de forma direta numa cartela que diz “será a Coreia do Norte o lugar mais solitário da Terra? Um país sem amigos, sem história. Apenas mitos, repetidos sem parar da manhã à noite”. Uma não-imagem, Songs From the North parece dizer, vai inevitavelmente ser acompanhada de uma ficção. Todo imaginário norte coreano é uma questão de mistificação, tudo que ele produz existe para exaltar uma história imaginária; são imagens que desaguam sempre numa ficção patriótica, que retomam o trauma inicial da separação (e tudo aqui rumo para a constatação de que a separação das duas Coreias é um trauma sem resolução possível) e buscam revê-lo pela afirmação da figura de seus líderes, sobretudo Kim il-Sung.  Uma das boas sacadas do filme é reconhecer que este exercício de mistificação corre em todas as direções: quando um país se recusa a representar a própria história, ao resto do mundo cabe somente mistificá-lo por outros meios.

Yoo não se interessa em oferecer um corretivo histórico a essas distorções mistificadores – é somente nas sequências com o pai que estas questões históricas são abordadas, com ele discorrendo sobre a separação e os efeitos dela sobre a psique coreana, assim como admitindo que a reunificação é uma possibilidade ilusória. Songs From the North usa seu material histórico pelo que este mito representa para os coreanos, e, se propõe um contracampo, este não será o da verdade dos fatos, mas as imagens do cotidiano da Coreia do Norte que a diretora captou em suas viagens.

Se há um limite claro no filme é que as tentativas de forjar uma intimidade com aquele espaço e pessoas nestas imagens nunca avança tanto quanto deveria. O próprio filme admite que os norte coreanos que Yoo filma resistem a se mostrar e olham para o outro lado quando percebem a câmera. A atitude é reveladora, mas resulta num olhar mais distante do que aquele que Songs from the North busca forjar. Sua intimidade permanece mais teórica do que prática – um discurso sobre a Coreia do Norte sentido, mas teórico.

Há algo a dizer sobre como os momentos mais humanos de Songs From the North aparecem nas suas cartelas, mais do que através de suas imagens. As sequências mais bem sucedidas de Yoo são aquelas nas quais ela capta celebrações tanto em algumas imagens históricas, como em contemporâneas – momentos que sugerem uma espontaneidade que quebra com a ideia de mistificação com a qual o filme luta o tempo todo. O mesmo acontece nas imagens em que a paisagem norte coreana é permitida registrar com força na tela. Mistificação da história, da terra, do povo… Songs From the North luta o tempo todo com esses vetores, buscando um contracampo para sua não-imagem. Ao seu final, a Coreia do Norte segue o lugar mais solitário do mundo, mas nos permitimos aproximar dela ao menos um pouco mais.

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