Short Stay, de Ted Fendt (EUA, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

*Cobertura do IndieLisboa 2016

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“’A gente pode fazer o que quiser’, disse o homem sem qualidades para si mesmo,
dando de ombros, ‘que isso não tem a menor importância nesse emaranhado de forças!’ Depois afastou-se, como uma pessoa que aprendeu a renunciar,
quase mesmo como um enfermo que teme qualquer contato forte.”

Robert Musil, O Homem sem Qualidades

Modéstia prêt-à-porter

Da duração ao título, da dramaturgia aos enquadramentos, tudo em Short Stay converge para a modéstia. À primeira vista e em linhas breves, o primeiro longa do projecionista, tradutor e crítico (além de realizador) estadunidense Ted Fendt é um conto despretensioso sobre o cotidiano de um homem sem qualidades. Mike (Mike Maccherone) é um rapaz acanhado, que trabalha em uma pizzaria em Nova Jérsei, até o dia em que encontra um amigo em uma festa e este lhe oferece a oportunidade de passar um tempo em seu apartamento na Filadélfia, no estado vizinho, substituindo-o em seu trabalho como guia turístico pedestre na cidade. Ao final dos 61 minutos de projeção, Mike regressará à casa, e todo o arco dramático do filme se restringe a esse curto intervalo na vida do mais ordinário dos protagonistas, durante o qual nenhuma transformação significativa acontece.

A receita é conhecida: minimalismo da intriga, ausência de ênfase dramática, atenção ao cotidiano, uso de atores ocasionais. Esse fiapo de trama basta para colocar em movimento uma mise-en-scène que segue o compasso da observação: o trabalho do filme é acompanhar – a uma distância média – os acontecimentos mínimos na vida do rapaz, entre os walking tours malogrados, os conflitos no apartamento e a tentativa frustrada de conquistar uma garota. Mike é o típico anti-herói que falha em tudo o que faz: tímido, covarde e resignado, torna-se mais uma expressão dessa verdadeira obsessão pelo fracasso de certo cinema indie estadunidense contemporâneo.

Diante de Short Stay, é impossível não pensar no mumblecore, sobretudo em como “a geração retratada por esses filmes é travada pelo constrangimento que faz com que cada abraço, cada manifestação física de qualquer sentimento, seja uma montanha que eles não sabem como começar a escalar”, nas palavras de Fábio Andrade. É como se Ted Fendt aplicasse a esse repertório imagético uma depuração extrema: o contexto é quase irrelevante, não há nenhum motor prévio para a narrativa, o tom é seco, a encenação é despida de qualquer sentimentalismo, os lugares quaisquer são filmados como lugares quaisquer. Mike é um pedaço de nada ambulante que desliza sobre o vazio fazendo coisa nenhuma. E a maior virtude do filme é justamente a de nos instalar no interior desse esforço contínuo de extrair drama, movimento, cinema, da conjuntura mais improvável possível.

No entanto, embora essa expurgação dos excessos de um universo já bastante codificado inspire algum interesse (e conte com alguns momentos notáveis na interação entre os atores, sobretudo aqueles em que a performance vacila entre o naturalismo e o distanciamento), o conceito está sempre à flor da tela, no comando de tudo. Ainda que imersos numa tessitura narrativa que busca a transparência, os personagens se prestam, no fundo, a um exercício de dramaturgia e de encenação arrière-pensée, no qual o método, embora dissimulado, é demasiado aparente. A aproximação – feita por Daniel Kasman – com o cinema de Éric Rohmer e Hong Sang-soo é pertinente, mas surge apenas como um ingrediente a mais de um filme que se revela, no fundo, um exercício cinéfilo infértil, que toma para si uma das maiores obsessões da arte do século XX – a figura do homem ordinário – e a transforma em mais um componente de uma sorte de revisionismo apático.

Se um filme como Hannah Takes The Stairs (Joe Swanberg, 2007) imergia nas relações ordinárias, na impotência dos personagens, na extrema banalidade do cotidiano para se lançar a uma entrega visceral ao devir dos corpos, Short Stay parte dos mesmos elementos, mas, ao invés de transfigurá-los e fazê-los vibrar cinematograficamente, só consegue reafirmar sua trivialidade mundana, como se a autossuficiência do conceito bastasse para sustentar um filme. E se a força do filme de Joe Swanberg se assentava fortemente na proeza de conseguir imprimir um verdadeiro estado de graça em plena ligeireza do digital, Short Stay faz o movimento oposto e se serve do 35mm como instância física de legitimação: no primeiro caso, trata-se de forçar o digital até que ele consiga exprimir, na fricção com os corpos vivos, uma beleza vitalista, quase incompatível com as possibilidades do meio; no segundo, o gesto consiste em utilizar um suporte nobre para realizar um exercício mortificante, que faz com que as vidas retratadas em Short Stay, fincadas no contemporâneo, só consigam expressar uma sensação de mal-estar velha e gasta, já mil vezes encenada, catalogada, prêt-à-porter.

A modéstia, então, revela sua face de cálculo. O esforço de depuração de Ted Fendt é indissociável de uma conceituação cerrada, que faz com que tudo o que apareça na tela – inclusive a granulação do 35mm – sirva a uma investida autoconsciente que transforma os corpos em mero veículo para ideias preconcebidas. Se o que resta do mumblecore enquanto fenômeno da história das formas – a despeito das enormes diferenças entre as obras – é uma sorte de energia pulsante e espontânea encontrada em meio à imobilidade de um cotidiano desencantado, é sintomático que Ted Fendt se sirva de um arsenal cinéfilo para, ao mesmo tempo, reencontrá-la e interromper seu fluxo. Embora se vincule a um território cinematográfico no qual a vitalidade é um dos traços mais evidentes, Short Stay é pouco mais do que nostalgia estéril.

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