Sheep (Mouton), de Marianne Pistone e Gilles Deroo (França,2013)

junho 5, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

moutonEncenar o desajuste
por Victor Guimarães

A sensação diante da narrativa de Sheep é a de experimentar um quebra-cabeça com algumas peças faltando. Sua estrutura triádica, formada por um prólogo e dois atos, exige um investimento bastante inusual: longe de sequestrar a atenção do espectador para que seja agente de montagem, o gesto do filme é o de encontrar uma forma para uma intriga inevitavelmente lacunar, descobrir uma narração possível – ainda que assumidamente mutante – para uma trajetória amputada. Fiel ao espírito fragmentário do todo, o enigmático prólogo não nos oferece nenhuma explicação sobre o que acompanharemos a seguir, mas encarna um sentimento que estará sempre presente a partir dali. Através do vidro, um rapaz espera, de pé em um pequeno pátio externo. A montagem alterna entre o pátio e uma sala no interior do edifício, dentro da qual uma funcionária responsável pela instituição em que ele se encontra (não sabemos o motivo, mas trata-se de uma forma de confinamento) combina a periodicidade quinzenal das visitas com sua mãe, e avisa a ela que o filho, embora concorde com a decisão, preferiria não vê-la nunca mais. Na expressão ausente do rosto do rapaz, na psique perturbada da mãe, na alternância entre o dentro e o fora, o que se encena logo de início é um desajuste, uma defasagem entre um personagem e o mundo, entre o mundo e as maneiras de experimentá-lo.

Durante o primeiro ato, é apresentada a subjetividade encarnada naquele rosto opaco: o jovem Mouton (Carneiro) é um ajudante de cozinha em um restaurante de Courseulles-sur-Mer, uma pequena cidade litorânea na Normandia. Entre descarregar o peixe, montar os pratos e correr na praia com os amigos, a existência de Mouton parece tranquila, banal, mas o olhar sobre ela é permanentemente assombrado por essa expressão aérea, indecisa, no rosto do ator. Mouton habita as cenas, mas em sua face se estampa uma ausência: corpo presente, personagem em outra dimensão. Nesse drama observacional, de planos quase sempre fixos e atenção detida aos gestos mínimos, há um prolongamento dos tempos mortos ao final de cada plano que vez por outra é excessivo, mas que se coaduna bem com esse sentimento de não coincidência entre imagem e sentido.

Já decorrida boa parte do filme, que parecia até então uma crônica bem cotidiana, um plano extraordinário intervém e promove um deslocamento crucial: com o rosto no centro do quadro, agarrado por muitas mãos, Mouton é alvo de uma sequência de cusparadas. O insólito (e a estranha beleza) da cena não se dá apenas pelo gesto, mas pela tonalidade que o faz existir na tela: todos os envolvidos riem (ainda que a expressão do protagonista permaneça sempre indecifrável), o carinho penetra a violência aparente, e o corte leva à corrida amistosa de Mouton entre aqueles que pareciam seus algozes. A partir da entrada em cena do grupo de amigos, o inesperado passa a perfurar o cotidiano, tanto no plano da intriga quanto na encenação: se o sexo é francamente antierótico (timidez absoluta, câmera distante e heavy metal na trilha sonora); a festa em homenagem à padroeira do lugar tem ares de orgia pagã (a imagem da santa é um busto modernista de uma mulher nua, a música e a bebida embalam os olhares e gestos libidinosos entre os fiéis).

O encerramento trágico do primeiro ato (na noite da festa, Mouton é atacado por um homem com uma motosserra e perde um dos braços) aciona procedimentos que escapam inteiramente ao viés observacional que já vinha sendo dinamitado: a sequência é antecipada por uma narração em voz over, o ataque dialoga com os códigos do horror e acontece em um tom de estranheza bem acima do que havíamos visto até ali. Quando Mouton sai de cena (com o braço amputado, ele decide viver com um tio na região da Picardia), o filme parece terminar, mas uma cartela anuncia uma sobrevida do drama: “a vida continua”, diz Louise a certa altura, e agora acompanhamos outro cotidiano que se define pela falta: o que acontece a um grupo de amigos quando o mais magnético deles é arrancado à força ao conjunto? O que acontece a um filme quando seu protagonista desaparece por uma intervenção súbita do acaso?

A mudança na dramaturgia traz consigo uma transfiguração da encenação: enquanto o foco de atenção se desvia para os outros componentes do grupo, o filme também se multiplica, tornando-se ainda mais heterogêneo. Durante o segundo ato, a forma conjugará os mais diversos expedientes: surgem cartelas, cartas lidas em voz over, sequências que acompanham cada personagem isoladamente. O desajuste – que parecia ser uma característica apenas do protagonista – se estende aos amigos e contamina a mise en scène, e o aparente prosaísmo das cenas se torna ainda mais insólito. Os planos detalhe substituem a observação distanciada (duas mulheres cortam um pedaço de carne que ocupa todo o quadro, várias mãos alisam um peixe morto na feira), o cotidiano pacato revela traços que conduzem a um outro lugar (os gêmeos vão ao encontro de uma prostituta e encaram a câmera em uma composição em portrait). O jogo com o fora de campo se torna mais intenso: o que resta é um filme amputado, um intrincado trabalho de luto que tem de lidar com a falta em termos cinematográficos.

Na segunda parte, há um gosto um tanto excessivo pelo nonsense em si mesmo – que, por vezes, parece limitar o gesto do filme ao apontamento de uma bizarrice generalizada e estéril. Sheep é irregular, nem sempre mantém a mesma energia, mas é um belo exercício de dramaturgia e encenação em torno de um personagem e das reverberações de um acontecimento trágico. Ao traduzir o desajuste que contamina a intriga em termos formais, o filme inventa uma estrutura complexa e demanda um engajamento muito próprio do espectador, atravessado pela identificação e pelo investimento afetivo, mas também pela distância e pela frieza do olhar. Entre a amizade, o idílio juvenil, a praia chuvosa e os golpes de motosserra, Marianne Pistone e Gilles Deroo descobrem personagens ambíguos e formas de narrar nada convencionais. Diante de uma intriga tão incomum, não há outra opção senão transformar o filme em um objeto igualmente estranho.

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