September, de Penny Panayotopoulou (Grécia/Alemanha, 2013)

junho 9, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

september

Retrato de uma patologia
por Raul Arthuso

September retrata uma patologia. Isso significa, de forma bem rasteira, mostrar um traço mental manifestando-se no corpo, o psicológico encarnado no físico. Esse seria o ideal de boa parte do cinema narrativo: os estudos do bom roteiro sempre distinguem a personagem bem construída como um ser com profundidade, criada por uma conjunção de traços físicos e psicológicos que o tornam complexa. A patologia é, então, a intersecção mais evidente dessas duas linhas. O filme de Penny Panayotopoulou cumpre este papel até certo ponto: Anna é uma mulher por volta dos trinta anos que leva sua vida divida entre o trabalho e o tempo livre, ao lado de seu cachorro de estimação Manu. Quando ele morre, Anna sente um vazio que precisa ser preenchido. Ela encontra na casa dos vizinhos um espaço para contornar o vazio ao ficar amiga da mãe da família, Sophia. Panayotopoulou consegue criar algum interesse em torno dessa personagem quando o filme está entregue a ela.

A narrativa é construída em torno de Anna, criando seu ritmo a partir do jeito desleixado e vagaroso da protagonista, que transita entre a simplicidade das ações e o desejo do voyeur em observar a casa do vizinho. Anna se torna uma grande personagem, nesse sentido, muito por causa do trabalho de sua atriz, Kora Karvouni. Seu corpo lânguido, os cabelos ruivos e uma postura corporal rígida, aliada a um jeito plasmático de andar, trazem uma carga de estranheza constante para Anna. Karvouni cria um olhar penetrante e ao mesmo tempo esguio; se as cenas em que observa a movimentação na casa de Sophia transparecem uma série de intenções – a solidão, o desejo de habitar, a vontade de participar do objeto do olhar – Anna tem, ao mesmo tempo, um olhar turvo que impede captar com precisão o significado do seu prazer de olhar.

Dessa ambigüidade advém o que de mais interessante há em September, pois existe ali um filme assombrado, que tem por princípio e fim o olhar e o corpo de Anna. Um corpo assombrado pelo vazio, um fantasma de um cachorro que assombra Stathis, o pai da família; uma vizinha assombrando uma família de classe média urbana (em dado momento, Sophia diz que não consegue dormir porque ouviu um barulho do lado de fora); o interior assombrado pelo exterior (Anna vai muitas vezes de noite à casa dos vizinhos) e uma mente atormentada por sua incapacidade de interação com o mundo externo. Todo esse assombro acontece a partir de uma mise en scène feita de gestos e olhares, cujo ritmo é ditado pela atriz.

Contudo, uma contradição coloca tudo a perder: um desejo de esclarecer todas as intenções e os traços psicológicos, pipocando o filme de informações que implodem as cenas com a grotesca carga de sentido jogada num terreno de sugestões. Assim é que em dado momento, por exemplo, Anna liga para sua irmã, que responde deixando clara a distância entre a protagonista e sua família, indicando o desejo íntimo de Anna de “substituir” sua família biológica por esta a seu alcance. Uma intenção no olhar silencioso e ambíguo de Anna é sempre acompanhada de um momento mais explícito da narrativa, num jogo de gato e rato entre sugestão e sentido, minando-se mutuamente: ambos revelam-se artifícios muito claros, com suas estruturas desvelando-se alternadamente ao longo de September.

Uma personagem em especial é peça-chave nesse jogo: Stathis, o marido impaciente de Sophia. Sua função é muito clara: ser o “condutor” do espectador desavisado, esclarecendo a ele qualquer intenção ou situação que não tenha ficado extremamente clara. É dele a frase: “ela é uma louca”, resumo bem mais rasteiro que o do início deste texto para uma patologia. Chega a ser patética a necessidade de um porta-voz da clareza numa narrativa organizada em parte na expressão corporal e no olhar da protagonista, e, nesse sentido, Stathis é o antagonista de Anna tanto no interior da história quanto na constituição da mise en scène. Homem e mulher, maturidade e juventude, classe média e classe trabalhadora, razão e emoção: se relacionada a Anna, a presença de Stathis é uma oposição do dizer ao sugerir, do sentido ao sensível, da clareza à ambiguidade. É uma oposição feita na forma e que também se reduz à mais óbvia dialética possível do homem racional e da mulher emocional. Se existe uma possibilidade de complexidade na linguagem corporal de Anna, ela se desfaz quanto mais invade o ambiente de Stathis, o rei que tudo sabe, tudo vê e, protegendo seus domínios, esclarece a verdade escondida num olhar turvo, desconhecido. Poucas coisas são mais insuportáveis do que a revelação da “verdade”.

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