Saint Laurent, de Bertrand Bonello (França, 2014)

maio 22, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

Saint Laurent 2

Um dândi efêmero
por Pablo Gonçalo

Estamos em 1976: a primeira sequência de Saint Laurent mostra o estilista de costas, um tanto distante, chegando num hotel. O atendente aborda-o; Yves apresenta-se: “Sou Monsieur Swan e tenho um quarto reservado”. Prestativo, o funcionário pergunta: “Veio a negócios?”. “Não, vim para dormir”. Surgem os letreiros, as músicas, outros cenários, mulheres com vestidos, Yves trabalhando no seu atelier de alta costura, olhando, cuidadosamente, suas modelos. Algumas cenas depois, Saint Laurent recebe e lê, em off, uma carta de Andy Warhol dizendo que julga os dois, claro, os maiores artistas do século XX. O motivo? Ambos amam a fama. Warhol quer fotografá-lo, mas quer também que Saint Laurent desenhe uma coleção inspirada em sua obra, assim como fez com Mondrian.

É entre Swan e Warhol; entre Proust, a pop art e suas polaróides voláteis, que o último filme de Bretrand Bonello tece o retrato de um dos principais estilistas da moda moderna. O lado proustiano, contudo, não seria tanto uma relação nostálgica com o tempo e a memória, mas o teor que se instala na alma da pessoa e do personagem: de forma nobre e pitoresca, Saint-Laurent era obcecado pelo escritor francês e comportava-se como se vivesse num dos seus romances. Fora da ficção, seu quarto chegou a ser decorado da mesma forma e com os mesmos objetos que os de Proust e todos os cômodos da casa remetiam a uma das principais figuras dramáticas de Em Busca do Tempo Perdido. Ciente desse pathos, o roteiro do filme utiliza-se dessa máscara para impregná-la, numa espécie de auto-retrato, ao rosto de Gaspard Ulliel, que interpreta Saint-Laurent com maestria. Há uma melancolia proustiana que habita seus olhos, uma discrição aristocrática, uma reserva que prima pela sofisticação e que, recluso numa torre de marfim, não quer, de fato, participar do mundo contemporâneo, que julga decadente. Mesmo a passagem ao universo de Sodoma e Gomorra e a relação com as drogas, como a heroína, são narradas como experiências proustianas, nas quais Saint-Laurent comporta-se como um dândi que nunca perde a elegância.

Saint Laurent 1

No polo oposto a esta altivez vê-se o mundo fugidio, prenhe de flashs, entrevistas, capas de revistas, e palmas, muitas aplausos de aclamação, quando, ao fim dos desfiles, Saint Laurent aparecia. É aqui – no glamour das passarelas – que ocorre o encontro simbólico com Warhol: quando Saint-Laurent posa nu, numa beleza apolínea e provocativa, para a foto de lançamento do seu perfume. Na década de 1970, o estilista transformou-se numa celebridade internacional e, assim, passou a frequentar festas sofisticadas, fazer viagens e cultivar amizades de um amplo círculo de artistas, instalando-se na sua famosa casa de Marrocos. É como um pop star, também, que ele começa a viver cercado pelas suas modelos e amigas, num convívio que mistura o fascínio com as mulheres, como se projetasse nelas parte da sua auto-imagem. Em determinado momento do filme, quando Saint Laurent veste uma das suas modelos e é perguntado sobre se aquelas roupas, um dia, sairiam de moda, uma de suas colaboradoras responde: “A moda passa, como os trens. Mas o estilo, este fica”. Retrata-se, assim, um Saint Laurent extremamente consciente das rápidas transições inerentes ao seu ofício e da sua linguagem, mas afoito em tirar beleza daquilo que é tido como útil, fugaz e passageiro.

Paralelamente ao Saint Laurent proustiano e à sua faceta pop, Bonello realça a chegada da velhice e salienta o ano de 1989 como decisivo, quando o estilista, já totalmente recluso, inicia sua estratégia de retirada do mundo da moda. Muda-se, inclusive, o rosto do ator, e Gaspard Ulliel dá lugar a Helmut Berger. A esta altura, as iniciais do seu nome, YSL, já se tornaram uma das principais marcas do mundo e Pierre Berger (Jeremie Renier), seu companheiro de vida inteira, é filmado como um empresário frio, calculista e ganancioso. Mesmo diante de uma das relações homossexuais e afetivas mais conhecidas da França desse período, Bonello retrata esse casamento como se ele fosse, dos anos 1970 em diante, perpassado pela regência de uma empresa, como se Saint Laurent e Berger fossem, os dois, juntos, faces distintas de uma mesma moeda e marca. É o trabalho, o dinheiro e o cultivo da compra de quadros caros e raros que une, ao longo das décadas, esses dois homens. Se o amor e a paixão passaram, a marca continua, persevera até hoje.

Saint Laurent 3

Na velhice, contudo, Saint Laurent não suporta mais a sua auto-imagem, seja a do seu rosto, seja, paradoxalmente, a da sua marca, ou mesmo dos estilos dos vestidos que desenhou. Já depressivo e doente, ele também percebe que, no mundo da moda, está ficando ultrapassado, enquanto, ao fundo, vemos as imagens que Warhol pintou dele, alegre e jovem. Há, ali, nessas cenas do período final da sua vida, uma possível alusão ao retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde: é a imagem fixa da juventude que, quando a velhice chega, torna insuportável o contato com esse corpo e ego do passado. Não é por acaso que Dorian Gray exige que o quadro do seu rosto não seja exibido, mas que fique guardado num porão, envolto por um pano preto, para não mais ser visto. Mais do que uma vaidade, é uma questão de fato estética. Quando o Saint Laurent velho olha-se no espelho, passa a conviver com o desespero de não conseguir mais alcançar a beleza, como mote tão caro à sua vida, e percebe que é impossível conviver com essa nova imagem de si. Junto à depressão da perda da estética – algo melancólico e tão proustiano quanto pop – surgem os falsos amigos, como Saint Laurent se referia aos remédios e pílulas que tomava.

Saint Laurent não segue a risca o modela das cine biografias lançadas recentemente, mas tampouco escapa das duras convenções desse formato. Há, de fato, várias tentativas legítimas de fuga dessas convenções. Aposta-se numa montagem paralela, que ganha momentos luminosos, mas, outras vezes, resvala na repetição dos seus temas e argumentos – a despeito, óbvio, das cenas belas, suntuosas, com uma trilha sonora empolgante. Dentro da trajetória de Bonello, vê-se um filme mais depurado, simples e convidativo. O curioso é perceber como Saint Laurent também poderia ser um personagem que passasse por Tiresia (2003) ou que, de alguma maneira inusitada, frequentasse a casa das prostitutas da L’Apollonide (2011). No entanto, é o estilo aristocrático de levantar-se após a queda que singulariza os tons fílmicos e biográficos do estilista. É no aspecto dramático, em síntese, e nos tons seguros do retrato de seu personagem que Saint Laurent revela seus melhores instantes e vetores.

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