Réptil no Subúrbio (Ang Pagbabalat ng Ahas), de Timmy Harn (Filipinas, 2014)

junho 3, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

Ahas

O jogo de emulação
por Raul Arthuso

Já há algum tempo o cinema olha para sua própria história como propulsor estético ou matéria mesma dos filmes. Se a arte pop foi incorporada com força no cinema a partir dos anos 1990, Réptil no Subúrbio é um bom exemplo de desdobramentos peculiares nesse início de século. O filme incorpora uma série de procedimentos do cinema trash de horror, cujo primeiro contato, em geral, acontece via televisão, marcado aqui pelo primeiro plano, no qual a tela de um aparelho televisor mostra uma espécie de zapping de canais até, de repente, explodir. Essa é sua postura ética em relação à matriz: emulando até o limite, o filme espreme o sumo até não restar nada ali. A começar pelas texturas defeituosas tanto da película – com grãos, riscos, véus e marcas mecânicas de cortes intervindo constantemente na imagem – quanto do VHS, que é trazido como forma de registro do “experimento científico” central na trama: a criação da “vida na TV”, um réptil mutante em forma humana, espécie de Frankenstein contemporâneo do subúrbio.

É do agregado de elementos toscos que Réptil no Subúrbio ergue suas (frágeis) estruturas, constituindo um “bizarre world” bastante particular: desde a família – núcleo central da narrativa, cujos traços exagerados a colocam em paralelo à grotesca família de Sherman na refilmagem de O Professor Aloprado com Eddie Murphy – até os elementos mais simples, como um partida de tênis corriqueira entre vizinhas do bairro ou uma “brisa” após fumar maconha, tudo passa por um “espelho” de distorção, dando proporções e potencialidades descontroladas para as formas. Em Réptil no Subúrbio as coisas são, na verdade, seu reverso mais desmedido: nada é o que parece, mas, na verdade, seu lado bizarro é o que mais aparece. O som do filme não é apenas inteiramente dublado, ele é também dessincronizado até o limite; a música é um clichê recorrente, mas seu timbre remete ainda a uma sonoridade de teclado semi-profissional; até mesmo a articulação de planos é guiada por uma lógica do “erro”, colocando a câmera sempre “num lugar errado”, com as atuações e as movimentações desenrolando-se de uma maneira que chama a atenção para a inabilidade da encenação, como se o defeito não estivesse apenas na superfície da imagem, mas também na pulsação de cada plano.

O limite da paixão pelo tosco e o erro se mostra na própria história, também regida pela incorporação de problemas dramatúrgicos, ações sem sentido, diálogos mal escritos, cenas sem desenvolvimento e – seu paroxismo – a ausência de clímax e final propriamente dito, encerrando-se num arbitrário fade out, ironizando a própria natureza de um “fim” (afinal, não seria todo final arbitrário?). O desenvolvimento da história se dá por uma explícita falta de finalidade, como que imersa numa viagem de entorpecente cujo riso e a alegria ascendem-se sem motivo aparente, e a duração não segue a lógica de um encadeamento natural das coisas. Um humor descompensado, embebido de “let it go”; uma narrativa apenas de causas sem consequências.

Isso não significa, contudo, que Réptil no Subúrbio seja um filme adolescente. Ele não é feito da incoerência ou da inocência de uma fase de formação e sua apropriação não está melada de nostalgia doce do amor por uma lembrança ou um objeto de culto. Réptil no Subúrbio é um exemplo mórbido de um tipo de apropriação kitsch do lixo do cinema comercial que a própria indústria já trilha com, por exemplo, O Âncora (2004) e Starsky & Hutch (2004), e numa via mais cult nos filmes de Robert Rodriguez, À Prova de Morte (2007), de Tarantino, e Drive (2011), de Nicolas Winding Refn. Mórbido, porque troca-se o prazer de culto pela inteligência da emulação. A perversão dos procedimentos de Timmy Harn está no limite do vampiresco, pois ele não cita, mas inverte valores: o tosco de um problema na imagem, o erro de sincronia, os problemas de execução das atuações e dos planos ultrapassam a homenagem e são trazidos ao filme como qualidades em si. A procura ostensiva pela imperfeição é uma virada completa na valoração do “bom cinema”, apontando mais um gesto de cinismo que de nostalgia.

Assim, nada no filme é passível de autenticidade e verdade, o que coloca uma relação ambígua com a própria referência, na medida em que um filme trash tem suas imperfeições por questões muitas vezes involuntárias. Réptil no Subúrbio esvazia qualquer possibilidade de uma narrativa de gênero crente nas potências do original ou de uma paródia rediscutindo as armas de fogo do objeto parodiado. Sua estética é a da emulação, sugando até o limite a beleza grotesco do objeto original… é quando emular vira um fim em si. A cena de sexo do filme aponta esse limite: filmada quase inteiramente por planos em ponto de vista das duas personagens, a sequência traz sua comicidade no erro das distâncias na câmera em relação às personagens filmadas, no balançar que imita o coito, nos ruídos tons acima do natural. Enquanto o referenciado tentava fazer um filme (e muitas vezes era incapaz de fazê-lo), o referente ri de sua capacidade involuntária de fazer rir.

Tirando alguns momentos de bastante inspiração cômica pela performance, como o grotesco jogo de tênis entre as vizinhas ou as duas cenas de dança do filme, Réptil no Subúrbio faz um jogo rebuscado com a imperfeição. Paradoxalmente, recai num parnasianismo às avessas, empolado na sua articulação de falhas e problemas intencionais. É a arte pela arte do erro: um arriscado jogo de esvaziamento rondando o nada.

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