Remainder, de Omer Fast (Reino Unido/Alemanha, 2015)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

45th New Directors/New Films

remainder1

Coisas que o dinheiro pode comprar
por Elie Aufseesser (colaboração especial)

“It’s breaking my heart to watch you run around
‘Cause I know that you’re living a lie
But that’s ok, baby
‘Cause in time you will find
What goes around, goes around, goes around
Comes all the way back around”

Justin Timberlake

Em seu celebrado curta-metragem de 2011, 5000 Thousand Feet is the Best, o prolífico artista visual Omer Fast retratou a vida de pilotos de drones a partir de uma entrevista, em loop, escrita e ensaiada de um ator interpretando um piloto e entrevista documental de um piloto americano aposentado, misturada com pequenas narrativas ficcionais mais soltas. Seja lá o que foi lançado desses “aviões sem piloto”, certamente pousou em seu primeiro longa-metragem, Remainder – uma adaptação do romance de estreia de Tom McCarthy – exibido no New Directors/New Films. Um jovem homem interpretado por Tom Sturridge percorre lances de escadas no centro de Londres e deixa uma valise preta para trás, até que um objeto não-identificado cai sobre ele atravessando um grande teto de vidro. Seu corpo é esmagado, quase (mas não de fato) morto; o que resta é um homem sem memórias.

Começa aqui uma história de uma longa série de maus tratos infligidos ao corpo do protagonista. Ele é “trucidado” na mesa de operação, tropeça e cai de cara num poça de leite, é socado por um morador de rua, é eletrocutado por um misterioso agente policial… Logo nos primeiros minutos de projeção, atenta-se para o aparente “prazer” do filme em machucar o personagem com quem os espectadores são convidados a se identificar. Mas isso não para com esse tratamento pastelão (sem humor) do corpo. A câmera constantemente brutaliza ao deslocar o protagonista, individualizando elementos dele, como quando ele começa a dançar freneticamente no metrô ao som de um didjeridum, ou tenta mecanicamente pegar uma moeda até ser golpeado pelo já mencionado mendigo. A presença corporal de um indivíduo em seu entorno é ignorada, resultando numa mise en scène organizada num “sistema” de cabeças flutuantes no espaço, alocando as pessoas num semidistópico ecossistema asséptico, frio, desalmado.

Nesse mundo em cirurgia, é difícil desenvolver qualquer emoção profunda, ou pensar nisso. Quando uma coadjuvante feminina adentra a narrativa (aparentemente, uma espécie de ex-namorada, talvez a ex de i, amigo…), fica o convite para questionar se o filme seguirá essa possibilidade de relações amorosas num mundo tão pouco convidativo e, acima de tudo, sem vestígios de qualquer passado na vida. Mas, imediatamente, essa personagem é tratada como um perigo em potencial como tudo e todos. Eles vão, eventualmente, como Tom, acabar esmagados, assassinados ou maltratados de alguma forma. Todo mundo é uma pedra no sapato de alguém.

Após o incidente inicial, a empresa responsável pelo objeto misterioso e sua queda oferece a Tom um acordo multimilionário, comprando, assim, seu silêncio – mais conveniente, como ele coloca, já que ele perdeu mesmo sua memória e não teria nenhum história para contar. Mas graças ao mundo de Omer Fast e seu entendimento de nossa sociedade capitalista, memória é uma commodity. Numa mudança inesperada, o filme dá uma guinada similar à premissa de Sinédoque, New York (2008), de Charlie Kaufman. Aqui, o agora ricaço decide investir seus recursos na recriação das poucas imagens retidas em sua mente. Após aceitar ser “escravo” da empresa, ele vira a própria repetição de sua estrutura capitalista, e escraviza (sem necessidade de aspas aqui) diversas pessoas sem identificação e sem nome para literalmente habitar a reconstituição de sua própria psique.

Uma proposta de cinema é uma visão do mundo, assim como uma visão do mundo é uma proposta de cinema. Mesmo não havendo um discurso claro em sua diegese ou um diálogo interessante sobre imagens em movimento, parece que o caminho do pensamento de Omer Fast é assim: dinheiro compra memória, que por sua vez pode comprar uma narrativa e a oportunidade de narrar; siga a seta e pode-se comprar seu lugar na arte do cinema… E, de fato, é exatamente isso que Omer Fast parece ter feito: ele “comprou a si mesmo” no formato de longa-metragem esperando os espectadores servirem ao único propósito de estarem presentes para ele; mas negligenciou a parte do cinema, junto com todas as implicações em termos de encenação, aderindo a escolhas bastante convencionais meramente ilustrativas do conteúdo da narrativa, e uma montagem tão mecânica e fria quanto o cofre do banco de Londres que Tom decide roubar (sim, após decidir recriar suas memórias, o protagonista de repente, e por alguma razão, decide recriar o roubo do banco que se torna um assalto a banco de verdade…)

O diretor retorna a estratégias similares de 5000 Feet is the Best, ao fazer toda história mais ou menos nula e trazendo o fim exatamente para o início, num gesto barroco, criando um arquetípico esquema circular. As personagens são prisioneiras de suas condições, e o espectador é refém da sua própria. Novamente, não há esperança para ninguém. A estrutura narrativa é tão corrupta quanto o mundo retratado por ela. Remainder parece um pleito involuntário e simplista em favor do utilitarismo, uma filosofia nascida no Reino Unido, onde o filme foi rodado, e consagrada pelo capitalismo. Mesmo esta tradição de pensamento, tomada em suas melhoras formas, parece mais atento com o coletivo que o indivíduo – enquanto Fast olha para o mundo como uma interação descontextualizada entre corruptas cabeças flutuantes.

O cinema frequentemente nasce de um desejo de recriar a memória, na verdade… talvez na maior parte das vezes. Mas aqui somos deixados num gélido panóptico de vidro que não deixa espaço para emoções quanto às referidas memórias. Ao tentar arranjá-las de uma maneira lógica, costurando juntas com o recurso da montagem, Fast entrega uma assustadora visão do mundo que essas memórias estão, de certa forma, tentando preservar.

Share Button