Real (Riaru: Kanzen naru kubinagaryû no hi) de Kiyoshi Kurosawa (Japão, 2013)

outubro 18, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

real

A necessidade de ir
por Pedro Henrique Ferreira

É sintomático que o desenho do mesmo dinossauro que Koichi (Takeru Satô) precisa encontrar para explicar o suicídio de Atsumi (Haruka Ayase) no início de Real seja materializado nas últimas sequências. Neste interstício, o sci-fi thriller de Kurosawa se configura como uma empreitada em algo metalinguística, um mergulho na psique do criador (simbolizado da forma mais literal possível no aparelho que conecta os subconscientes), embora não assuma em momento algum que o que está em jogo é realmente a arte.

Real se filia às típicas tramas rocambolescas que o cinema japonês vem produzindo atualmente (p.e.: Kitano, Miike, Aoyama), obras que começam em um ponto e terminam em outro completamente diferente, causando uma sensação de que dois filmes distintos entram em simbiose; que trazem mudanças inexplicáveis de conflito e viradas de trama sobre outras viradas; que sustentam uma profusão absurda de imagens e metáforas em sentidos mais entrópicos do que exatos. Não há ponderações: tudo é marcado por um exagero que flerta facilmente com a loucura. Em um dos diálogos mais elucidativos, Atsumi (Haruka Ayase) diz que não pára de desenhar, isto é, de produzir novas imagens, porque é assombrada por um sentimento de vazio – porque parar significaria lembrar de algo que quer esquecer. Ao fundo desta proliferação ininterrupta, deste excesso de produtividade típico do Japão moderno, estaria algo que a levaria ao suicídio. A pesquisa de Koichi (Takeru Satô) pelo desenho perdido da infância rapidamente se configura como uma busca constante no cinema de Kurosawa: a busca pelo fantasma que o país, em seu processo de modernização, deixou para trás. E a forma como esta saga investigativa é organizada segue prescrições semelhantes a alguns de seus trabalhos anteriores (p.e. Pulse, de 2001, ou Retribution,de 2006), isto é, perdendo-se em um jogo de virtualidades rumo ao destino final: deparar-se com o trauma.

Há um tipo de plano recorrente em Real, quiçá na obra de Kiyoshi como um todo: o rosto do personagem está de frente para nós, mas de costas para um evento estranho que se desenrola ao fundo do quadro. Invariavelmente, o personagem há de se virar e encarar aquilo que não quer ver, um fenômeno que, por truques cinematográficos, se caracteriza como sobrenatural, como aterrorizante. No exercício da decupagem, primorosa como sempre (pois é o que parece estar no cerne do exercício cinematográfico para Kiyoshi), o diretor cria aparições fantasmagóricas – algumas explicadas (os corpos trucidados que vêm dos mangás de serial killers de Atsumi), outras nem tanto (os “zumbis filosóficos” que tomam um sentido muito mais literal e metafórico do que narrativo). Isto, que primeiramente se apresenta como alucinação, aos poucos ganha um caráter de realidade.

É então que acontece a virada principal da trama e, mesmo que seja uma das viradas mais previsíveis e mal executadas de toda a carreira de Kiyoshi, ela retira ainda um pouco mais do tecido narrativo aquele plano que poderíamos entender como “realidade”. Apenas ao final as diversas camadas se tornarão pura virtualidade, e as imagens, entrópicas, não mais alucinações, mas figuras sem índices, as únicas imagens possíveis. Ao mesmo tempo, essa manobra dá à depressão de Koichi um aspecto não-individualizado, compartilhado.

No fim das contas, a “pesquisa” investigativa caminha em um sentido de afunilamento, e as múltiplas metáforas que antes pareciam girar em falso operam em um sentido de condensação: os escombros do parque abandonado na ilha passam, assim como a escuridão que invade a Tóquio de Pulse, a simbolizar um projeto de Japão que, se concretizado, assassinou muitos outros projetos possíveis no caminho. Um deles é representado pelo menino, amigo de infância dos dois, cuja morte suas consciências haviam voluntariamente esquecido, que ecoa com a mesma vontade de vingança que a dama de vestido vermelho em Retribution. Trata-se de se debruçar em uma forma de diagnóstico das raízes remotas da materialização da imagem para, ao mesmo tempo, elaborar um discurso sobre as causas que levaram o Japão moderno a ser o que é.

Ainda que Real não esteja no panteão de grandes filmes de um dos diretores mais interessantes da atualidade, Kiyoshi Kurosawa trabalha os mesmos artifícios e elabora esse universo ao mesmo tempo tão realista e sobrenatural de suas outras obras, para investigar a partenogênese do excesso aterrorizante no âmago do espírito artístico japonês contemporâneo. É um nascimento que decorre de um trauma histórico, dos fantasmas atropelados que ainda habitam o Japão e seriam, talvez, responsáveis pela elevada taxa de suicídios da juventude (um tema recorrente nos filmes do autor). Em meios aos escombros da ilha, perseguidos por uma culpa que nunca serão capazes de esquecer, Kiyoshi novamente reitera a necessidade moral de se dar as mãos e seguir adiante, sem ter certeza para onde se deve ir.

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