Praia do Futuro, de Karim Ainouz (Brasil/Alemanha, 2014)

março 12, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

Praia do futuro 02

A atração gravitacional de uma geografia perdida
por Pablo Gonçalo

                                                                  “Você mora na Berlim Ocidental,
eu na Oriental, mas o Muro
já caiu há duas décadas. O que antes
era o motivo único
das minhas visitas a seu hemisfério
torna-se agora
um novo Muro
imaginário,
de um lado o seu território,
do outro o meu habitat,
e, como sempre, acabo,
do lado, onde, mais uma vez, tudo
é oferto e gratuito mas indesejado,
onde o que a população quer
é fugir para o outro lado,
onde a sua população preza
a liberdade individual das carreiras
solo e acumula
para si o que poderia, talvez,
quiçá num mundo apaixonado,
ser compartilhado,
comum”.
Ricardo Domeneck

Casa: o lugar que se deixa para trás. Mais: ao partir, deixa-se bem mais do que um quarto, um bairro, uma cidade, um país. Casas abrigam algo íntimo que pátria ou cultura alguma abarca. Transitórias ou efêmeras, duradouras ou utópicas – importa pouco; hospeda-se, numa casa, o átomo da subjetividade. Pode-se, é fato, morar sem ter uma casa; mas, paradoxalmente, casa alguma sublima o lugar; não cabe na mala. Casas, sujeitos intransitivos.

Os personagens de Karim Aïnouz estão sempre fora de casa – em trânsito, de saída ou incomodados com uma moradia que não acolhe seus conflitos. Por isso essa constante tônica de não-lugares que vemos nos seus filmes. Motéis. Postos de gasolina. Aeroportos. Rodoviárias. Situações indefinidas. Locações que não remetem a espaços específicos, locais resilientes a uma abstração. Uma subjetiva sem corpo que dirige um carro (Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, 2009). A velocidade do transe na garupa de uma moto (O céu de Suely, 2006). Em Praia do Futuro, esses locais ermos são evocados já no belo título do filme. Uma praia-paisagem, um substantivo concreto, que retira de si, das suas entranhas e areias, um devir, um lugar outro, no horizonte nebuloso, um lugar a ser inventado.

Com um enredo tênue e conciso, o filme narra o encontro amoroso entre Donato (Wagner Moura) e Konrad (Clemens Schick), que acaba de perder um amigo afogado entre as fortes ondas da Praia do Futuro, no Ceará. Essa é a síntese da primeira parte, O Abraço do Afogado. O filme ainda possui mais dois capítulos também marcados pela perda. Um Herói Partido ao Meio conta a chegada e a permanência de Donato em Berlim, na Alemanha, e enfatiza o conflito entre a insistência e a dissolução de uma certa identidade. Já em O Fantasma que Falava Alemão, no último capítulo, ressalta-se a recusa de um vínculo com o passado e o seu brutal retorno. No conjunto da obra de Karim, num plano geral e comparativo, a principal novidade de Praia do Futuro é o ato, do personagem e do filme, de tentar estar num lugar, de morar. Recusa-se a intensidade do nomadismo para delinear movimentos internos aos seus personagens. Por isso, talvez, a opção por cortes secos e elipses entre os três momentos dramáticos do filme, como se fossem camadas geológicas de tempos sobrepostos e cristalizados no mesmo lugar; ou, por outro ângulo, a confluência de lugares distintos que convivem, juntos, simultaneamente, entre os corpos que por eles transitam.

Essa decisão de Donato é enfatizada na cadência dramática própria ao filme e esse protagonista carrega consigo os paradoxos entre locações, sístoles e diástoles que passam a habitá-lo. Os não-lugares de Praia do Futuro concentram-se tanto no corpo de Donato como na forma pela qual Berlim, como cidade enigmática, é retratada e ocupada. Donato é um salva-vidas cearense acostumado à amplidão do mar, ao nado livre, sem fronteiras. Essa abundância da água ganha um contraste metafórico com seu trabalho num aquário de Berlim (com uma água mais represada) e por um mar escasso que dispersa as ondas nas praias do norte da Alemanha. Como nas marés, aliás, há uma força dramática e gravitacional que cria tensões entre o corpo de Donato, a praia do futuro e Berlim. Trata-se de uma gravitação sem imagens, que cria sombras, fantasmas e espectros entre o corpo e os lugares. Como se fossem resquícios geográficos transpostos e inconciliáveis eles transformam-se, assim, em entre-lugares sobrepostos e justapostos que dilapidam uma coerência corporal e emocional; algo similar, por exemplo, aos personagens fantasmáticos de Que horas são aí? (2001), de Tsai Ming-liang, em que vemos uma paixão que tenta conviver entre lugares opostos, como Paris e Taiwan. Naquele filme, a elipse também atualiza-se no rosto e no corpo fantasmático de Jean-Pierre Léaud, que surge como o menino de Os Incompreendidos (1959), visto por acaso pelo personagem Hsiao-kang (Kang-sheng lee) em Tawian, quem, tempos depois, simplesmente senta-se ao lado do ator num cemitério em Paris.

Sem dúvida, a parte O Herói Partido ao Meio configura-se como a melhor do filme. O ritmo e a dramaturgia salientam uma forma de estar sozinho em Berlim, uma cadência na qual a condição de estrangeiro torna-se, com sutileza, o tom predominante. Um inverno sem fim, numa Berlim também infinda. Um enredo que desliza sobre o tema da coragem, mas compartilha instantes genuínos numa réstia de sol, tênue e fugaz, entre as nuvens, que atinge o rosto de Donato. São pequenos prazeres; descobertas discretas. Karim Aïnouz soube, na maioria das vezes, fugir de uma Berlim turística para retratar parques, pequenas ruas de Neukölln, deslocamentos mais longos no S-Bahn que apenas ocasionalmente são filmados. Distancia-se, assim, da euforia espacial de Corra, Lola, Corra (1998), de Tom Tykwer,  ou do retrato de uma juventude blasé, sem foco e nostálgica que é captada em Oh, Boy (2012), de Jean Ole Gerster, filme mais recente que enfatiza facetas hipster que circundam o bairro de Prenzlaeur Berg.

A Berlim que pulsa no corpo de Donato revela-se como a cidade que melhor retrata aqueles não lugares, físicos e temáticos. Cidade prenhe de falhas, de lacunas e incompletudes, de buracos; cidade incoerente, que hospedou a opção pelo fragmento da prosa de Benjamin, Berlim, assim, pinta-se como o lugar gravitacional onde os não-lugares anulam-se, criando um campo magnético e sensível, possível e (ou provisoriamente) equilibrado. Ou, de forma complementar, como o “o centro de forças que coloca em jogo o futuro da humanidade”, como escreveu Kracauer ao passar pelo Bahnhof Zoo, depois de voltar de Paris e se defrontar com o nazismo emergente. Na Berlim atual, e no filme, esses cristais do tempo podem ser vistos na sequência em que Ayrton (Jesuíta Barbosa) contempla um relógio na Alexanderplatz, em que todas as horas do mundo parecem condensadas numa praça anódina e turística, um espaço que seria o centro de um não-lugar.

Num contraponto, temos o personagem de Konrad que passa de estrangeiro e turista, na primeira parte, para um alemão que acolhe e vive com um brasileiro em sua casa. Curiosamente, volta-se ao vocábulo Heimat, que, em alemão, possui tanto uma acepção próxima à casa, num sentido abstrato, com à noção de pátria (Heimatland, que também aglutina o sufixo terra). O personagem de Konrad é monocromático, com poucas nuanças, e tende mais a impelir e a observar os movimentos, internos e externos, vividos por Donato. Num contraste, a figura do brasileiro (de Donato e do seu irmão) seria a própria encarnação ontológica do desterro, como bem salienta o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que, ao analisar a desapropriação e expulsão de índios, durante séculos de colonialismo e capitalismo, vê, ali, uma tônica de não-lugar que seria inerente à condição de índios sul-americanos – e dos brasileiros.  

Em termos dramáticos, essa persistência em conotar seus personagens por lugares aproxima esse filme (e talvez a obra) de Karim Aïnouz a algumas experimentações feitas por Wim Wenders ainda no anos 1970. Em Alice nas Cidades (1974), por exemplo, o que vemos é o trânsito de Philip Winter (Rüdiger Vogler) como um fotógrafo entre Nova York, Amsterdam e o norte da Alemanha em busca de uma casa onde morariam os pais da menina Alice. Para reconhecer a casa eles possuem apenas uma foto, que, curiosamente, mostra uma casa comum, igual a dezenas que vêem nas ruas da Alemanha. A foto da casa dos avós remete menos a um lugar realmente existente e se transforma, assim, em um lugar qualquer que, embora tenha um índice concreto, torna-se fugidio, abstrato e inapreensível. No filme de Wenders, e sobretudo nessa sequência, seus personagens têm como ponto de partida o fantasma imagético de um lugar que guia-os, talvez em vão, para encontrar o índice, concreto, ao qual ele remete. Praia do Futuro, num contraste, narra o fantasma dos lugares que perseguem seus personagens e cria, com eles, uma força gravitacional que às vezes parece mais física do que simbólica.

Boa parte da cobertura midiática brasileira enfatizou cenas homossexuais “fortes” no filme, o que, obviamente, abarca apenas uma fagulha irrelevante (e desnecessária) que esse filme de Aïnouz transmite. Certamente um olhar homofóbico sentirá um incômodo ao ver a face de prazer de Wagner Moura, como Donato, ao ser sodomizado. Mais do que um personagem, sodomiza-se, ali, a figura simbólica que encarnou o Capitão Nascimento no blockbuster Tropa de Elite, de José Padilha. No entanto, é este o olhar que precisa ser problematizado, criticado e refutado. Nada a mais. Nada a menos. Para além do sexo em si, há uma aposta no afeto intenso que transita entre os corpos, como um fluxo sensório que remete ao Beau Travail (2000), de Claire Denis. Nesse recorte, o afeto também transforma-se na força gravitacional que aproxima e distancia os corpos de Donato e Ayrton. Um afeto que transcende o sexo. O essencial dessas cenas está num ensaio imagético que, embora cru como os melhores Fassbinders, não busca afrontar o espectador.

Mostram-se corpos belos, fortes e pulsantes que fogem de uma (às vezes estereotipada) delicadeza (homo)erótica. Aliás, enfatiza-se um gesto fundamental que busca retirar o prefixo politicamente correto do homoerostismo, para, ousada e necessariamente, tratar Eros apenas como um deus, uma força que desdenha dessas classificações. Assim, Aïnouz parece mais atento em flagrar esse erotismo masculino menos óbvio com o qual, como um jogo de sedução, visa despertar a sensibilidade de corpos cênicos frente às emoções imprevisíveis do espectador. São corpos que transam e dançam (como na bela sequência em que cantam “Aline”, de Christoph). A dança, com discrição, transforma-se num elemento recorrente nos filmes anteriores de Aïnouz (como na bela sequência em que se canta “Se você jurar”, em Madame Satã). Dança-se com corpos plenos, que gritam, por dentro, para esquecer, sobreviver. Dança-se como suporte, para suportar. Não são deuses, mas corpos que dançam e, pela dança, pelos descompassos subjetivos, encontramos o melhor do erotismo nos filmes de Aïnouz.

Embora o filme transmita com química própria todos esses elementos, ele fraqueja e tende a uma dispersão vã em muitos momentos. Os diálogos de Praia do Futuro, por exemplo, nunca são tão fortes quanto as imagens, eventualmente soando deslocados e despropositados. Há, também, uma insistência em caracterizar seus personagens como aventureiros, pelo fato de andarem de moto, o que não chega a convencer. Talvez seja parte de uma sensibilidade Camp, mas esses artificialismos dramáticos ou exageros metafóricos destoam, muito, da potência imagética ou da impreganção dos lugares nos corpos que a câmera de Karim tão bem capta. Conciso e um tanto óbvio, o plot de Praia do Futuro esgota-se rapidamente e recorre a artificialismos sensórios que teimam em apostar na beleza como fim. Essa característica remete aos versos de Frank O’Hara, no seu Meditations in a Emergence: “It is easy to be beautiful, it is difficult to appear so. I admire you, beloved, for the trap you’ve set. It’s like a final chapter no one reads because the plot is over”.

 Mesmo com deslizes, constata-se um filme rico e inquieto que, depois de Abismo Prateado (2011), volta a apostar na ventura e nas sutilezas da imagem. Intensa, entregue e apaixonada, a obra de Karim, hoje, parece já numa outra linha do tempo, já um tanto distante do complexo contraponto e caleidoscópio do cinema brasileiro contemporâneo. Paradoxalmente, isso pode atualizá-la. Ela já não brilha como um farol que foi (e quem precisa de faróis hoje?), e parece desnudada, aliviada, talvez, frente uma certa áurea messiânica que a circundava; um tanto discreta, essa obra chamusca, sob uma neblina opaca, entre a névoa, como a luz pálida de uma moto que ora aproxima-se, ora distancia-se do horizonte. Como Donato, Karim Aïnouz parece à vontade no seu atual lugar – de fala, de cinema, de moradia.

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