Posfácio – Imagens do Inconsciente, de Eduardo Escorel e Leon Hirszman (Brasil, 2014)
março 1, 2015 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Juliano Gomes
A matéria do abismo
por Juliano Gomes
“bru·to
(latim brutus, -a, -um, pesado, irracional, estúpido, absurdo)
1. Irracional.
2. Grosseiro, rude.
3. Tosco.
4. Tal qual sai da natureza.
5. Sem descontar a tara (ex.: peso bruto).
6. Que está sujeito ainda a deduções (ex.: salário bruto). = ILÍQUIDO ≠ LÍQUIDO
7. Animal irracional.
8. Homem rude.
9. [Televisão] Conjunto não editado de imagens ou filmagens.”
(Verbete da palavra bruto, retirado do dicionário Priberam)
O cabeçalho deste texto já coloca uma dificuldade. Aqui na Cinética, temos por hábito identificar o diretor do filme logo acima dos textos. A dificuldade se dá pela característica do material aqui em questão. Leon Hirszman realizou nos anos 1980 o conjunto de filmes Imagens do Inconsciente (1986), que acompanha o trabalho de Nise da Silveira com artistas internos do hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. No entanto, o cineasta havia planejado um último filme para a série, que chegou a ser filmado mas não montado, devido à sua morte prematura. Esse filme seria editado a partir de uma entrevista de Hirszman com a Dra. Nise da Silveira, filmada em 1986. São essas as imagens em questão neste texto. Eduardo Escorel, que montou diversos filmes de Leon e foi um dos curadores da restauração recente de sua obra, além de diretor de Deixa que Eu Falo (2007), sobre Hirszman, é quem trabalhou nesses materiais resultantes da tal entrevistas e tornou possível a exibição do Posfácio à maneira como podemos vê-lo hoje. Apesar de Hirszman estar creditado como diretor, a forma final do que vemos na tela na montagem de 2014 resulta das opções de Escorel, portanto me parece justo creditar ambos, na medida em que este texto se ocupa justamente do deslocamento que a intervenção de Escorel aponta no material de Hirszman e Silveira.
O parágrafo acima, apesar da aparência de um aparte, de um prólogo, já toca num dos núcleos de interesse do texto – não exatamente a questão da autoria, mas a dos materiais e de seu manejo. O que parece resultado de um cuidado extremo com a integridade das imagens e sons originais resulta afinal em um foco incomum para a realidade material do que assistimos, para o suporte, as imagens em película 16mm e os sons. Em dois dias de abril de 1986, Leon Hirszman e sua equipe gravaram menos de duas horas de filme e mais de duas horas de registros sonoros. A montagem atual tem um pouco menos de oitenta minutos. Mais do que enfatizar essa diferença, este material que não foi posto no filme, o que interessa aqui primeiramente é a questão da escassez: há pouco negativo. Mais de uma vez, ouvimos a voz de Leon (sempre fora de quadro), se reportando à economia necessária de película (“nós hoje completamos nossa cota de negativo” diz), e Escorel adiciona essa dimensão ao material na medida em que inclui os comentários de Leon e as imperfeições do material bruto. A câmera permanece voltada pra o corpo de Nise da Silveira, que fala sobre seu trabalho e suas ideias, enquanto, a partir dessa opção de ter o material em questão, passa a acontecer, simultaneamente, outra coisa nas imagens. Além da dimensão decisiva das intervenções de Leon e sua equipe no fora de quadro, pelo som, há um nível de exploração justamente deste drama das intempéries do material sensível. Povoada de telas pretas e interrupções, a estabilidade do registro (Nise sentada numa mesma cadeira, num mesmo ângulo, durante todo o filme) tem como contraponto os desaparecimentos iminentes do material, uma espécie de subdrama físico.
A força dos desaparecimentos e interrupções que o filme nos apresenta são catalisadas pela qualidade encantatória de presença do corpo e da fala de Nise de Silveira neste material. O próprio Escorel escreveu que “um amigo comentou que os braços de Nise da Silveira, filmados por Leon Hirszman, lembram galhos secos, acentuando a fragilidade do seu corpo em contraste com o vigor da sua inteligência. Segundo esse mesmo amigo, Nise hipnotiza pela sua grande força, deslumbrante expressão verbal e imenso poder evocativo”. Essa força de contraste entre a fragilidade do corpo e da voz com o vigor da inteligência, de um poder de formulação de ideias, aliada ao ritmo, a uma ralentação que de tão precisa se torna absolutamente eficiente em termos de narrativa, faz de sua presença um acontecimento de diversas camadas. Nise fala de seu trabalho e de suas ideias, absolutamente brilhantes e vivas, entretanto vemos uma idosa senhora, magra, vincada, com seus grandes olhos filtrados por grandes lentes que parecem ser dois óculos, cuja luz, ou melhor a ausência de luz, avança sobre si (efeito próximo a uma filme que com este guarda uma série de semelhanças: He Fengming – Histórias de uma Chinesa (2007), de Wang Bing), e marca essa sensação constante da iminência do desaparecimento (que as telas pretas somente reforçam). Estabelece-se uma tensão subjacente do haver imagem, do haver movimento, na frente da câmera, na coreografia encantatória de Nise, mas também nos chassis de Hirszman. Percebe-se, em ambas as partes, uma dose de esforço físico para a continuidade do encontro entre luz, corpo, som e emulsão. O fim, a escassez total, a morte, registra seu avanço no enegrecimento da imagem, nas suas interrupções, nas texturas da pele envelhecidas, nos ossos que protuberam de seus braços. E nessa simultaneidade de instabilidades e fragilidades se sustém a tenacidade de ambos, colocados frente à frente e cuja composição é a força motriz do filme.
Ao mesmo tempo em que o corpo se separa da fala, na medida em que cada um, pela sua força expressiva, estabelece seu próprio drama, com ritmos próprios, a relevância do conjunto se dá justamente deste preciso cruzamento entre as partes. Um dos temas principais das falas de Nise é a falência de um modelo cartesiano de pensamento que separa corpo e ideias, de idolatria a premissas racionalistas de ver o mundo que se fundam em um desejo de permanência. Ela mesma caracteriza essa forma como “aqueles que pensam que trabalham com o cucuruco”. A emergência de sua presença material na tela, com destaque para seu permanente pas de deux de mãos, deixa ver justamente, em ato, o que suas falas enumeram: essa força da expressividade involuntária na efemeridade. São Imagens do Inconsciente, na medida em que o que elas expressam é uma espécie de pensamento, de formulação expressiva que passa por um outro tipo de vontade que não é deliberada por um raciocínio interno, e que as imagens da película são sensíveis a ela. A cura pelo fazer e pelo trabalho com as mãos que Nise reiteradamente nos narra é justamente este investimento no movimento, nesta forma de pensamento fora da cabeça, localizado mesmo nas mãos, plenamente capaz de expressar e de ser sensível pela externalidade. Posfácio torna-se um estranho filme de dança, de performance física, da tenacidade dos meios, dos parcos músculos e rolos, da profundidade da pele, cujo compromisso é a intensidade mútua em um espaço curto de tempo. Ela mesma diz “você como cineasta estuda seu personagem, vê como ele move as mãos. Minha gesticulação deve estar dizendo muito aqui. Talvez mais do que eu estou conseguindo falar”.
Na filosofia de trabalho de Nise, na de Leon, na de Escorel, cada uma à sua maneira, não há face interna. O que é possível trabalhar é o que é externo, e pode portanto ser sentido, e comparável. O que está em jogo aqui é esse campo de ideia expressas por essas externalidades, por esse manejar dos materiais, sejam eles pele, película ou luz. A “Emoção de lidar”, expressão que dá nome a uma das partes do filme e também a um livro de Nise, é justamente esta expressividade do manejo, a invenção que se desdobra do contato dos materiais com o tempo. O que prevalece no filme é justamente essa história material que Nise narra, Leon persegue e os grãos da imagem contam, até que não possam mais. Cada um deles expõe, a cada fotograma, os seus limites, pois bruto é “o que está sujeito a deduções”, é material exposto, e é esse o centro dessa disposição dos elementos no Posfácio, esse trabalho pela exposição, e as analogias daí advindas. Mais do que um compromisso com a integridade do registro, há um investimento nas suas intensidades. Nise diz “eu sou uma pessoa curiosa do abismo”. Essa vizinhança com o insondável o filme toma para si e a transforma em força própria, multiplicando-a para além do discurso da personagem, ampliando-o para a dimensão das externalidades, das superfícies, dos materiais enfim. Nessa dobra da precariedade, tal manobra transforma esses pedaços soltos em instantes pregnantes que transbordam seus limites, equilibrados nas bordas desses abismos evocados.
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