Por um campo total: o trabalho sonoro em Filme Socialismo, de Jean-Luc Godard

maio 16, 2013 em Em Pauta, Raul Arthuso

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por Raul Arthuso

A primeira parte de Filme Socialismo, último trabalho de Jean-Luc Godard, traz uma formulação essencial não apenas para a obra em si como para todo o cinema: ouvir um filme. Pois, Hollywood convencionou o som de cinema – ao longo do cinema sonoro, mas padronizado após o advento do sistema Dolby – como o colchão onde a imagem se deita, com a função primordial de fazer contínua a descontinuidade do registro cinematográfico, cuja montagem é a costura a ser maquiada. O desenho de som da maioria retumbante dos filmes é uma luta, por vezes paradoxal, em fazer o registro sonoro ter vida, mas não mostrar-se; ter personalidade, porém sem presença, permanecendo como uma longa ambiência que permite à ficção – a imagem – se desenrolar.

O resultado evidente dessa operação histórica do cinema sonoro é que nós, espectadores, raramente ouvimos um filme – o som está lá para ser sentido, sublinhar e corroborar. A voz sincronizada com a imagem é, em geral, a única expressão sonora discursiva, exceto em raros casos em que algum ruído ganha o primeiro plano, intencionalmente significando algo imprevisto – o exemplo mais famoso é o som do helicóptero em Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, sobreposto à imagem de um ventilador de teto de um quarto, aos poucos assumindo o verdadeiro ruído do aparelho mecânico visto na imagem, como enunciado da impressão da guerra na psicologia do personagem. Contudo, na conta final, o som é um acessório de luxo.

Já no início de Filme Socialismo, há uma inversão na função inicial do jogo som-imagem: o som é sempre descontínuo enquanto a imagem tende ao contínuo. Isso não se faz sem certo desconcerto. A banda sonora respeita muitas vezes a perspectiva da imagem e as condições de gravação: os sons cujas ações se dão em primeiro plano são audíveis, enquanto as ações distantes perdem a presença sonora. Em cenários barulhentos, os sons mais suaves são engolidos pelos fortes ruídos do lugar, enquanto espaços pequenos com um barulho de fundo constante, porém audíveis (que geralmente seriam amenizados na edição de som com filtros de ruído e outros recursos eletrônicos), são mantidos, mesmo competindo com a compreensão do texto das personagens.

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Mais radical ainda: Godard mantém as falhas do som por causa da sensibilidade do aparato de gravação. Quando uma das personagens corre no convés do transatlântico com um microfone de lapela preso à roupa, ouve-se o farfalhar da roupa raspando no microfone, o gap das pancadas sofrido pelos passos da corrida, as intermitências da alta sensibilidade do aparelho não suportando uma situação agressiva a sua estrutura.

Isso é mais evidente com o vento. Essa primeira parte de Filme Socialismo se passa em um cruzeiro. As cenas no convés são sempre em situações de muito vento, apenas visível quando bate nas roupas das pessoas ou levanta o cabelo das mulheres. Por outro lado, ele é sempre audível: o vento bate no microfone de captação e causa um ruído tão incômodo quando fascinante. Pois, entendido o conceito do realismo da gravação de Filme Socialismo, esse ruído do vento, tratado como falha na estética convencionada do som, dá a impressão de novidade ao evento, como uma primeira audição de um vento até antes nunca trazido para o cinema. E, então, ele serve não só para possibilitar o prazer de ouvir um som até então desconhecido, como ativa a sensibilidade total do espectador: pode-se ver o vento como se fosse a primeira vez, pois ele é ouvido como se assim o fosse. De alguma forma, há um diálogo com o espanto causado por O Vento, de Victor Sjöström, um filme mudo cujo surpreendente trabalho de imagem para dar presença ao vento dá a sensação de se poder ouvi-lo.

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Nesta primeira parte de Filme Socialismo, as pessoas, enfurnadas em um transatlântico, produzem e consomem imagens o tempo todo. O barco está rodeado de telas, sob a economia do excesso, e, então, as imagens tendem ao significante puro, imagem pela imagem, o ter sobrepondo o ser. A mistura de arca de Noé das imagens com a torre de Babel das culturas é, na verdade, um Titanic: a vulgarização das imagens as destitui de seu punctum, o iceberg com o qual estamos destinados, enquanto cultura fundada na imagem, a colidir e afundar. Por isso, é preciso ouvir – leia-se “entender” – o não visto, buscar uma nova imagem que não seja só significante puro, mas também significado, sensibilidade, sentido(s): uma imagem-som – diferente do “audiovisual”, valor simbólico de mercado da sociedade capitalista em seu estágio atual.

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Essa operação proposta se torna possível porque Godard entende a natureza que o registro sonoro carrega em si, derivada das limitações do aparato de gravação. Ao registro sonoro não é permitido o claro recorte do mundo como as lentes da câmera o fazem, delimitado pelas quatro bordas do quadro. O som está condenado a um campo expandido: suas escolhas de posicionamento, abertura e timbres dos microfones alteram as qualidades de determinada sonoridade, porém não impedem que um “além do quadro” sonoro seja trazido. Quando se quer gravar uma bola de basquete quicando na quadra, não é possível gravar a bola sem que todos os ruídos e ambiências (pés; a reverberação do ginásio; possíveis gemidos do atleta) em torno dos quique venham como bônus. Pois, o registro sonoro abriga possibilidades infinitesimais de cada som gravado além da sonoridade expandida ao jogo campo/extra-campo estabelecido pela imagem. Indo mais longe: se falamos em um campo/extra-campo, o som cumpre o ideal de expandi-lo para além do que enquadra a imagem com as possibilidades de uso expressivos da natureza infinitesimal e de expansão do registro sonoro – como Godard absorve em Filme Socialismo

Essa natureza infinitesimal do registro sonoro reside em cada textura, nos pequenos fragmentos de som vindo de respirações de vozes, de rasgos de áudio, de saturação de ruídos – o vocabulário para o áudio é tão limitado quanto nossa percepção dele – como os pigmentos que compõem uma cor, as pinceladas em uma tela, os detalhes de traço de um desenho, com a diferença de que esses são elementos constitutivos de uma pintura ou um desenho, enquanto a natureza infinitesimal de uma voz, por exemplo, é algo fugidio, uma vibração teimosa que escapa numa palavra, um timbre sobressalente de uma frase grande dita em alta velocidade, o resultado de uma interação do som com o aparato de gravação, mas não o fundamental de um som… não o quique da bola de basquete, mas o arranhado que sai do couro encontrando o cimento do chão. A natureza infinitesimal é o que nos faz perceber a particularidade, não a propriedade essencial que faz um som reconhecível.

Já a expansão é a natureza da gravação do som que sempre escapa à perspectiva da câmera. Se fosse possível imaginar o mais longo dos travellings, acompanhado por um microfone captando o som correspondente, essa imagem nunca será capaz de capturar todos os sons possíveis. A gravação sonora estará sempre captando algo que escapa às bordas da imagem e, nesse grande travelling que vai tornando campo os extra-campos imediatamente anteriores e posteriores, foge do maior campo possível dessas imagens sucessivas. Nem uma panorâmica de 360 graus poderia fazê-lo: o som escapa por todas as bordas da imagem e o campo expandido é a possibilidade da imagem cinematográfica mostrar algo para além do jogo campo/extra-campo da decupagem.

Com isso, Godard toma a natureza infinitesimal da gravação sonora (os “problemas” da captação, as particularidades de cada som num espaço/tempo específico) e a expansão do campo (tudo além da imagem campo/extra-campo imediato) como princípio e fim; ouve-se muito e ouve-se bem, trazendo os elementos de fora da imagem para o centro do som, propondo algo como um campo-total, co-habitado pelos sons do quadro, do fora de quadro e além-do-filme – música, textos, ruídos, banda sonora de filmes –, um campo concebido pelo ouvido da cultura que faz do cinema condensado na imagem-som a verdadeira arca de Noé do terceiro milênio.

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É necessário aprender a ouvir para reaprender a olhar, não apenas sentir os sons da forma sistematizada pelo cinema industrial, mas saber ouvir e saber que se ouve. Por isso em Filme Socialismo ouve-se tudo, marca-se a descontinuidade de som com a audição das entradas e saídas de ruído pós-sincronizado na imagem, atenta-se para as texturas dos ruídos e dos ambientes, ouve-se no espaço, mas também no tempo. Enquanto o som é marcado, expandido, mostra seus passos e marca seus rastros, a imagem flui, tende ao neutro para recobrar suas forças nesse campo-total formulado na banda sonora.

Um questionamento pode surgir sobre se esse campo-total de Filme Socialismo não seria apenas uma concepção teórica e intelectual de um cineasta discutindo a cultura de imagens e o cinema no novo século. Entretanto, o condicionamento a uma forma de ver e, em nosso caso principalmente, de ouvir requer uma crítica propositiva: Godard não apenas formula; dá a ouvir o uso das possibilidades sonoras a partir dessa natureza expansiva do registro de som. Quando efetivada ou simplesmente manifestada, essa natureza ativa o gosto de ouvir, um prazer primeiro e natural, como o ato de descobrir. E, Filme Socialismo não atinge apenas a consciência e o intelecto, mas nos coloca numa posição de consciência desse gosto. A descoberta do “gosto de ouvir” reprimido, abre nossos olhos. Perdemos a inocência.

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