Por exemplo, Electra (Par Exemple, Electre), de Jeanne Balibar e Pierre Léon (França, 2013)

março 1, 2015 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

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Dialética e invenção
por Victor Guimarães

Alguns dos primeiros planos indicam certo território pelos quais o filme irá se mover, mas podem ser um tanto enganosos em relação ao que, de fato, se constrói na tela. Num deles, o rosto de Pierre Léon é iluminado pela luz do computador, enquanto uma voz narra o célebre mito de Electra, princesa de Micenas. Noutro, uma tela de computador exibe uma ficha de inscrição do festival FID Marseille, referente a um projeto de filme de ficção chamado Electre, dirigido por Jeanne Balibar. Essas primeiras imagens sugerem um filme-processo, espécie de documentário reflexivo no qual os dois cineastas colaboram na luta para conseguir financiar e realizar sua obra. O que vemos a seguir, no entanto, é algo muito diferente disso: trata-se de um experimento dramatúrgico bastante complexo e multifacetado, que flerta com a autoficção metalinguística e com o comentário sobre os bastidores do “mundinho” do cinema contemporâneo, mas vai muito além desse primeiro gesto. O movimento do filme consiste em extrair potências ficcionais inesperadas das situações mais ordinárias do fazer cinematográfico (trocas de e-mails, reuniões de financiamento, leituras de texto) e em conjugá-las com excertos da tragédia, numa sucessão delirante – e deliciosa – de performances que se organizam em uma sorte de colagem surrealista.

Há um aspecto lúdico decisivo, plasmado em um dos gestos mais interessantes (e bem-humorados) do filme: enquanto vemos a caixa de e-mails de Jeanne Balibar aberta e lemos algumas de suas correspondências com amigos sobre o projeto em curso, subitamente passamos a ouvir sua voz  a entoar canções cuja letra é constituída integralmente pelo texto das mensagens. Por vezes – e aqui a montagem incide de forma notável –, trechos banais dos e-mails são retirados do contexto e passam a irrigar outras cenas: quando um fragmento da mensagem diz “Je suis libre tous les jours” (“Eu estou livre todos os dias”, em referência à disponibilidade para uma reunião), o verso da canção destaca – pela via da repetição – a ideia de liberdade, e passamos a ver uma série de performances de Electra (vivida pela própria Jeanne) pelas ruas da cidade.

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A encenação anti-ilusionista dos diálogos da peça nos mais diversos espaços urbanos também adquire um caráter lúdico e performático, acentuado pela montagem. Com o texto nas mãos, uma personagem performa um ato de fala no metrô, e a resposta (o que seria o contracampo do diálogo em uma mise-en-scène convencional) vem de outro lugar, em outra paisagem urbana. O anti-ilusionismo, no entanto, difere do movimento reflexivo tipicamente moderno: a acentuação do ato de leitura ou a cisão da continuidade espacial – que rompem com a transparência do relato – não têm como princípio a revelação do aparato cinematográfico ou a provocação do espectador diante do próprio engodo, mas a construção de uma narrativa ficcional a partir de outros parâmetros. Não se trata de uma desconstrução, mas de escolhas altamente construtivas: tudo aquilo que seria banal ou ordinário nos aparece transfigurado pela ficção; tudo aquilo que seria da ordem do mito é profanado pela intervenção reflexiva, convertendo-se em outra fantasia.

O ápice desse gesto acontece nas sequências em que as figuras ficcionais interpretadas por Jeanne e Pierre se encontram com uma produtora cultural, na tentativa de conseguir financiamento para um projeto audiovisual. Trajados com figurinos de cores berrantes e novamente munidos dos textos, os três interagem em uma conversa que logo se transforma em monólogo: a produtora fala a língua do mercado cultural contemporâneo, enquanto os dois artistas se limitam quase inteiramente a assentir, atordoados pela verborragia. A mise-en-scène é tomada por uma potente contradição: enquanto o texto nas mãos revela o dispositivo ficcionalizante e os figurinos tendem à completa fantasia, o cenário ordinário e o conteúdo dos diálogos empurram a cena para a verossimilhança. O gesto mais contundente, no entanto, consiste em embaralhar esses regimes de crença: o discurso verborrágico da produtora, que tenta a todo custo explicar a lógica de produção e distribuição de conteúdo na Web, mais parece um texto beckettiano. O personagem de Pierre – fundamentalmente um bufão – é crucial. Quando a produtora fala da lógica hipertextual contemporânea, com suas inúmeras narrativas subsidiárias que se desprendem de um tronco comum, ele mostra ter entendido bem a lição: “Ah! É como Balzac!”.

Ao fazer conviver, em novos termos, tantas contradições – a tragédia grega e o metrô, o realismo e o surrealismo, o e-mail e a canção, a racionalidade e o mito –, o filme inventa uma política muito própria. Se o mito de Electra pode ser pensado como o surgimento da racionalidade democrática moderna – o julgamento de Orestes no Areópago de Atenas –, o mercado audiovisual contemporâneo, com suas regras e procedimentos democráticos, é também o lugar do ressurgimento do mito (inscrito no discurso reificado da produtora). Por exemplo, Electra afirma, a um só tempo, a necessidade política da dialética e o imperativo pleno da invenção.

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