Piloto de Bombardeio (Der Bomberpilot), de Werner Schroeter (Alemanha Ocidental, 1970)

maio 5, 2014 em Em Pauta, Victor Guimarães

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A modernidade esquizofrênica de Werner Schroeter
por Victor Guimarães

Já nas duas cenas iniciais, em menos de um minuto, Piloto de Bombardeio diz a que veio. Na primeira, três belas e sorridentes mulheres, trajando insinuantes corpetes, adentram um quadro que combina a imponência das colunas brancas (e da música triunfalista) a uma tremulante bandeira do Terceiro Reich, diante da qual elas performam a saudação nazista. Após um corte extraordinariamente produtivo, elas reaparecem: de quatro, seminuas, em um alongamento cuidadosamente simétrico. A coreografia terrível do Heil encontra a paródia fulminante nas pernas sedutoras que se levantam e se abaixam simultaneamente, encoberta pelos ecos de uma multidão que bem poderia ser aquela do discurso do Führer aos jovens em O Triunfo da Vontade (1935), seguidos de trechos do “Danúbio Azul”.

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O golpe de Schroeter é rápido e frontal: trata-se de oferecer à iconografia da propaganda nazi um contraponto abertamente debochado; de combater a farsa monstruosa de Theresienstadt com outra farsa, diametralmente oposta; de contrapor o artificialismo dissimulado de Goebbels ao excesso operístico desejado, assumido como potência. Se o filme do campo de concentração de Terezín, realizado na primavera de 1944 (do qual só nos restaram alguns fragmentos), buscava transformar o horror da experiência dos judeus encarcerados – o trabalho forçado, a fome, a superpopulação, na antessala da “solução final” – em um idílio de tranquilidade e eficiência, resumido no inadjetivável título Der Führer schenkt den Juden eine Stadt (O Führer oferece uma cidade aos judeus), Schroeter se apropria dessa imagérie e faz desse gesto um vigoroso movimento de profanação, reinserindo os ícones na história das formas e desviando-lhes o curso em direção a um jogo complexo de aproximação e distanciamento. Enquanto o sorriso das crianças de Terezín na hora do lanche escamoteava a fome no fora-de-campo (as latas de sardinha eram confiscadas após a filmagem, conta a historiadora Sylvie Lindeperg), a propaganda em Piloto de Bombardeio já nasce sob o signo da exposição total, da frontalidade que marcaria o cinema de Schroeter desde então. A ginástica das meninas judias (forçadas a participar da encenação do embuste contra seu próprio povo) encontra, nos exercícios das musas de cabaré, um contracampo irônico e fulminante.  

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Fragmento de Der Führer schenkt den Juden eine Stadt (1944)

Como escreveu a pesquisadora Ulrike Sieglohr, Piloto de Bombardeio foi“provavelmente o primeiro filme alemão a tratar do ‘mito cultural’ do Nazismo”. Dez anos antes do ensaísmo de A Patriota (Alexander Kluge, 1979), é uma espécie de equivalente paródico da modernidade sisuda do Não Reconciliados (1965) de Straub: embora sejam filmes extremamente distintos, ambos partilhavam a coragem de enfrentar, de maneira incisiva e frontal, o legado indigesto do passado recente da Alemanha, fazendo do presente o lugar da contradição não superada. Em Piloto de Bombardeio, dois traços significativos do cinema de Schroeter aparecem indissociáveis: a verve operística/pop/excessiva/melodramática/artificial que acompanharia toda sua trajetória, e o engajamento político, que se manifestaria mais diretamente em filmes como A Estrela Risonha (1983) e Sobre a Argentina (1986).  

A narrativa figura episódios desconexos da carreira conturbada das três personagens que abrem o filme: a alegria inicial dos corpetes, o colapso nervoso de Mascha (Mascha Rabben), a partida de Carla (Carla Egerer) para Viena, a tentativa de conseguir um emprego na burocracia nazista. Tudo na encenação tende ao artifício: o requinte mambembe dos cenários; os quilos de maquiagem; a caricatura da secretária nazi; as performances que visam diretamente o olho da câmera. A auto-ironia aparece na boca de Magdalena (Magdalena Montezuma), a líder do grupo, agora uma educadora de adultos ainda no tempo do Reich: em uma aula sobre o maneirismo na fotografia a partir de um livro de imagens da cantora Elisabeth Schwarzkopf, ela elogia a composição direta, que captura a tensão no rosto da artista (“é um documento da humanidade”) e critica duramente um portrait (“aqui, tudo é posado”; “a iluminação enfatiza a extrema artificialidade”, “o olhar astuto parece insincero”). Contrariando o que diz a personagem, Schroeter é o cineasta da pose por excelência, que aposta no hieratismo dos corpos, no plano como tableau. Mas naquilo que A Morte de Maria Malibran (1971) daria a ver os movimentos milimetricamente calculados e a paixão encarnada nos rostos, Piloto de Bombardeio intercede sempre com uma pitada de distanciamento brechtiano, fazendo desse mergulho na insinceridade uma plataforma crítica.

Logo após essa aula – em que Magdalena atacava a artificialidade e equivalia o caráter indicial da fotografia ao humano –, a personagem percorre a beira de um rio em meio à neblina, portando um buquê de flores brancas, em uma cerimônia ao mesmo tempo fúnebre e suicida. A banda sonora radiofônica anuncia a derrota de Hitler em alemão, a ovação de Churchill em inglês. Nesse cenário de cores frias e tomado pela melancolia, ressoa a voz da protagonista que tenta se afogar no rio: “Procurei desesperadamente um caminho de retorno à humanidade”. A operação crítica de Schroeter é altamente complexa: o mergulho na trajetória das personagens caminha lado a lado com a análise histórica; a identificação inevitável com a beleza das moças é fendida pelo gesto alegórico. Na psiqueperturbada dessas mulheres dilaceradas pela História (Magdalena e a nostalgia pelos tempos do Reich; Mascha sempre à beira de um novo colapso; Carla e seu sonho vienense impossível), Schroeter encontra uma chave fabulosa para lidar com os traumas alemães, traduzindo na forma do filme – na dissociação ininterrupta entre som e imagem; na extrema fragmentação da montagem; nas livres justaposições entre o devaneio e a performance – um estado de esquizofrenia permanente. 

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A derrota na guerra dispara uma perambulação ainda mais caótica, atravessada por essa subjetividade fendida. “Era como se algo houvesse se perdido de nossas vidas”, diz a voz over de Magdalena. Atrasadas para um concerto, Mascha e Magdalena se reencontram com Carla no saguão. Enquanto a música soa (o júbilo alemão reservado à melodia no fora-de-campo), as três discutem os próximos passos (emigrar para a América; conseguir uma posição no movimento feminista; retornar ao sucesso de 1943). A nostalgia pela era de ouro do Reich e os paradoxais planos de associar o Germanismo à integração racial nos Estados Unidos encontram no modernismo esquizofrênico de Schroeter – o trabalho com o silêncio; as repetições; a colagem de elementos díspares – uma resposta formal à altura. 

O som de “Beat out that Rythm on a Drum”– da trilha do musical Carmen Jones (Otto Preminger, 1954) – substitui as valsas vienenses na banda sonora, e o portrait das moças loiras com o casal negro já em solo estadunidense é prenhe de ironia. Emigradas, elas atuam como professoras convidadas para disseminar a nova ideologia. Nas sequências na escola ou na rua, o contraste entre esses corpos alvíssimos – fragmentos da velha Alemanha – e os de uma América pobre e multirracial compõem uma mise en scène altamente provocativa. 

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Fracassada a tentativa de embarcar em uma nova aventura (o affair de Mascha com o tal piloto de bombardeio encerrava prematuramente o projeto impossível), o retorno ao passado é o derradeiro movimento da ópera. Um novo programa de cabaré – dedicado ao presidente Nixon – retoma as velhas performances, agora inteiramente despidas da glória de outrora (aos pedidos de Carla por palmas, o filme responde com o som dos aplausos artificiais). A grotesca “dança da cobra” de Magdalena e a canção de alto-mar de Carla só encontram o silêncio indiferente como resposta. No número final, de volta aos corpetes de 1943, o fundo imponente das colunas brancas foi substituído por um cenário improvisado; o plano geral da escadaria deu lugar ao palco exíguo; a ovação hitlerista foi transformada na fumaça dos cigarros da plateia indiferente. 

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Animados pela canção napolitana “Santa Lucia” na voz de Elvis, os últimos planos estampam a derrota nos corpos envelhecidos e cansados (Carla ficara grávida do namorado de Mascha, e seu aborto põe fim à carreira das três). A montagem interpõe pela última vez as imagens do triunfo passado ao fracasso presente, e a melancolia da despedida é o golpe final do filme. Na trajetória abortada dessas três representantes de uma Alemanha falida, na investida paródica sobre o mito nazi, Schroeter encontra um olhar historiográfico pessoal e inconfundível, ao mesmo tempo em que inventa um léxico político pujante e singular. 

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