Pessoas Pássaro (Bird People), de Pascale Ferran (França, 2014)

outubro 23, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

bird-people

As possibilidades são infinitas
por Filipe Furtado

A imagem mais recorrente de Pessoas Pássaro é a da janela semiaberta dos quartos de hotel, com uma pequena fresta que permite ao ar circular entre o dentro e o fora. O filme de Pascale Ferran é todo construído a partir da ideia do trânsito (não por acidente, o espaço privilegiado da ação é de um hotel de luxo nas proximidades de um aeroporto) entre dentro e fora que reforça uma ideia de transformação. Com isso, pergunta que domina este novo longa-metragem de Ferran é: o que significa a ideia de liberdade? O filme busca responder a indagação de forma a costurá-la à sua própria construção, e ambiciona poder se afirmar como uma obra livre ao mesmo tempo em que responde a toda uma história e uma expectativa do cinema francês. Ferran propõe aqui um laboratório de formas e ideias que respondam justamente a este desejo de liberdade que Pessoas Pássaro almeja afirmar.

O filme é construído a partir de quatro blocos relativamente distintos: um prólogo que estabelece o espaço do hotel, as principais premissas estéticas e dramatúrgicas do filme e seus dois protagonistas; um pequeno epílogo que fecha suas pontas; e duas sessões de cerca de cinquenta minutos dedicadas aos seus dois protagonistas, um executivo americano (Josh Charles) e uma arrumadeira do hotel (Anais Demoustier). É uma estrutura consideravelmente fechada para um filme que deseja buscar este movimento de renovação, mas é justamente no jogo entre esta estrutura e a maneira como a encenação de Ferran busca afirmar sua liberdade que se encontra boa parte da graça do filme.  Somente no epílogo, no qual as partes se encontram de maneira fechada demais, que Pessoas Pássaro fraqueja um tanto. A dialética entre suas duas metades e as noções de liberdade e prisão lembram bastante a dialética possível entre O Império do Desejo (1980) e Amor Palavra Prostituta (1981), as duas obras-primas de Carlos Reichenbach sobre a ressaca da contra-cultura no momento da abertura de nossa ditadura militar.

As duas metades centrais de Pessoas Pássaro intencionalmente buscam se aproximar das formas mais consagradas do cinema francês. Na primeira, com Charles, estamos diante de um drama realista seco, com ênfase no procedimento e repetição, enquanto na parte do filme dedicada a Demoustier Pessoas Pássaro dá um salto rumo à fantasia e abraça uma encenação artificial e subjetiva. Paradoxalmente, os olhares dessas duas metades se complementam: enquanto as sequências dedicadas ao executivo são todas voltadas para si mesmo, as com a arrumadeira têm um forte componente voyeurístico – sua liberdade é toda voltada para a ideia de poder experienciar o outro.

Se Pessoas Pássaro é um filme que afirma um salto para liberdade, é relevante observar como ele envolve um misto de afirmação/negação da posição econômica dos seus personagens. Há um inegável fator econômico envolvido na maneira como o executivo abandona tudo, paradoxalmente, algo só possível para alguém com as fontes para recusar uma vida social mediada pelo trabalho. Como Josh Charles faz questão de afirmar sempre que questionado, sua decisão de abandonar sua vida atual (empresa, família, etc.) e permanecer de forma indefinida na Europa é porque “ele assim decidiu”, de forma unilateral. As longas cenas nas quais ele informa o sócio, o advogado e a esposa da sua decisão (sempre mediadas pelo celular ou Skype) têm um humor sutil, que faz Charles soar como um adolescente birrento, mas sem jamais perder a empatia do filme. Sua busca por liberdade nunca deixa de ser uma egotrip muito particular, ao mesmo tempo simpática e profundamente egoísta. Para alcançar o mundo, primeiro nega-se as pessoas dentro dele. Por outro lado, Demoustier é apresentada como alguém que se ocupa de escutar/olhar as pequenas narrativas à sua volta desde sua primeira aparição, mas sua liberdade só se revelará possível quando o contrato social for apagado e ela puder assistir (e ocasionalmente participar) as pequenas histórias à sua volta, sem assumir o papel de arrumadeira.

O bloco dedicado a Charles reforça uma presença física constante: o ator passa o tempo quase todo sozinho no quarto de hotel e sua performance é definida quase exclusivamente pela linguagem corporal, impedido de contracenar presencialmente com seus companheiros de cena, enquanto a câmera da cineasta aos poucos esquadrinha o quarto com sua impessoalidade típica de espaço em trânsito. Se o filme anterior de Ferran, Lady Chatterley (2006), lançava mão do romance de D.H. Lawrence para poder construir um projeto físico de abertura a um mundo concreto, Pessoas Pássaro busca um processo similar a partir de uma lógica sensorial bem diversa. A secura da primeira metade tem algo de opressor, até aos poucos conquistar o espectador pelo seu próprio excesso.

A metade com Demoustier é seu exato oposto, a começar por frequentemente acontecer do outro lado da janela, nas imediações do hotel ao qual o filme retorna sempre de forma simbólica. Os planos desidratados da primeira metade do filme são substituídos por uma combinação de uma câmera subjetiva em constante movimento, com alguns dos efeitos especiais mais sofisticados e simples do cinema contemporâneo, entre os quais há alguns momentos privilegiados, como o encontro com o artista japonês.  Boa parte do efeito de Pessoas Pássaro depende de o espectador aceitar mergulhar com o filme nesta passagem de um momento e relação com o mundo a outro. O cinema contemporâneo é rico em narrativas bifurcadas (e o salto proposto aqui não é completamente distante do movimento da observação dos amantes para a experiência da selva em Mal dos Tópicos, de 2004), mas poucos dependeram tanto de como este movimento de um momento ao outro consegue afetar o espectador. Por isso mesmo, me parece pouco útil discutir se uma das partes é mais efetiva do que a outra, já que elas são absolutamente co-dependentes, e um pouco da beleza de Pessoas Pássaro surge nos momentos em que Ferran consegue sugerir o mágico na sua metade mais realista, ou miséria e perigo nas suas partes fantásticas (o gato é especialmente assustador). O foco do filme, afinal, não é o vidro da janela, mas a fresta aberta; ele deseja estar nos dois espaços e poder fruir livremente entre eles, e não afirmar a superioridade de um sobre o outro.

As sequências iniciais do filme se passam em trânsito no aeroporto e no caminho entre ele e o hotel, e, antes de se fechar sobre Charles e Demoustier, o filme nos permite escutar/observar uma série de outros tipos. Uma das grandes graças de Pessoas Pássaro é justamente a maneira que ele sugere uma infinidade de outras possíveis narrativas ali, dentro daquele mesmo universo: há todo um outro filme sobre a esposa abandonada de Radha Mitchell, confinada à tela do computador, ou outro sobre o concierge vivido por Roschdy Zem, e Ferran se diverte sugerindo varias possíveis histórias para os hospedes de hotel que Demoustier acompanha. Pessoas Pássaro é, entre muitas outras coisas, uma das mais originais variações sobre Janela Indiscreta (1954) já feitas. À investigação sobre a natureza do cinema de Hitchcock, Ferran soma seu questionamento sobre liberdade para afirmar o cinema como este espaço no qual, com devida coragem e imaginação, tudo será possível e aceitável; basta a disposição para dar um salto no desconhecido.

Share Button