Perfídia, de Bonifácio Angius (Itália, 2014)

agosto 25, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

perfidia

A vida na redoma
por Filipe Furtado

O melodrama familiar, no caso aqui a relação pai-filho, sempre foi um dos alicerces do cinema italiano – posto para bom uso por cineastas diversos como Luigi Comencini e Marco Bellocchio – algo inevitável dada a posição central da família na sociedade italiana. Perfídia, primeiro longa de Bonifacio Angius, é muito consciente tanto da história do cinema local, como do apelo que filmes calcados em relações familiares tortuosas exibem, e lança mão deste excesso de consciência justamente para reforçar o clima de paralisia que é sua contribuição ao melodrama familiar italiano.

Esta ideia de paralisia é explicita na caracterização do filho (Stefano Deffenu), um homem de 35 anos praticamente sem vida e perspectivas, ou sequer grandes traquejos sociais. O filme ocasionalmente sugere elementos daquela família que parecem anteriores à ação (sobretudo no papel da mãe falecida), mas nada que explique como Angelo possa ser tão desprovido de vida – ele sugere um personagem de cinema que esperou por 35 anos até o começo da sua narrativa. Peppino, o pai turrão (Mario Olivieri), por sua vez, é apresentado como participante de  outra redoma igualmente incapaz de lidar com o mundo exterior, e tem sinais de problemas de saúde. A despeito de momentos em que fala da esposa e do seu desejo de viver, Peppino, como o filho, também sugere um homem sem vida pregressa, que existe para pôr a situação dramática em movimento. Perfídia se propõe a apresentar essas duas existências em redoma e mostrar como elas entram e deixam de entrar em choque.

Nada mais próximo do melodrama italiano do que esta premissa de pai e filho que se reconectam tarde demais. Os elementos do gênero e seu apelo emocional são bastante visíveis, mas lutam o tempo todo com o desejo de manter a vida dos seus dois protagonistas em suspenso. O filme é estruturado cuidadosamente em duas metades iguais: na primeira, o pai se dispõe a finalmente colocar a vida do filho nos eixos; e na segunda, é a vez de o filho tomar para si a responsabilidade de cuidar do pai doente. A graça do filme é justamente propor o choque destas duas figuras encasteladas, e suas melhores sequências são aquelas nas quais Angelo e Peppino podem existir juntos e a relação dos dois consegue escapar da construção dramatúrgica árida de Angius. Ocasionalmente, existe algo surrado e didático na forma ilustrativa com que essas interações são mostradas, sobretudo nas sequências em que o pai busca arranjar um emprego para o filho. É, porém, nestes momentos que o filme alcança alguma força, em particular numa sequência na qual saem à noite juntos, e que representa a trégua entre eles, antes da doença do pai.

De resto, o filme tem grandes dificuldades de escapar de um esquematismo de construção, pois Angelo e Peppino pouco conseguem existir para além de seus arquétipos melodramáticos. O rompimento entre eles é uma necessidade para que o filme exista, mais do que algo que ele é capaz de imaginar naturalmente. Pois Perfídia é um filme assombrado por esta tradição do cinema italiano à qual precisa responder. Existe um grande cinema italiano que desapareceu, que o filme deseja ao menos relembrar, mas faltam-lhe recursos para promover o seu retorno com força. Que os dois protagonistas existam encastelados, incapazes de se relacionar com o mundo, é uma boa metáfora para como o próprio filme existe num museu de tradição italiana, do qual é incapaz de escapar (neste sentido, traz à mente alguns filmes de Giuseppe Tornatore, cineasta mais hábil do que Bonifácio Angius em lidar com tal peso). O uso constante de música, em sequências que o filme procura eternizar, mas só consegue emoldurar no academicismo, só reforça este sentimento. Em Perfídia, as imagens se mostram demasiadamente estudadas, prontas para responder a uma tradição, mas nunca são realmente eternas.

Durante o Festival de Locarno, um dos grandes destaques sem dúvidas foi a retrospectiva do estúdio Titanus, um dos grandes alicerces da indústria italiana, envolvido com projetos desde os mais evidentemente autorais (Zurlini, Tretti) até os peplums e melodramas pouco considerados à época. Hoje, podemos discutir o tamanho da crise do cinema italiano, mas é inegável que sua indústria agoniza já faz três décadas, e de que estamos muito distante do auge da Titanus. No seu desejo de retomar uma das suas principais tradições, Perfídia é sintomático de tal processo, e falta-lhe o traquejo para chegar efetivamente à força de um filme como Incompresso (1966), de Comencini. No esforço de responder a uma tradição, o filme de Bonifácio Angius acaba soterrado sob seu peso, se limitando a descrever a vida em uma redoma.

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