Paz para Nós em Nossos Sonhos (Peace to us in our dreams), de Sharunas Bartas (Lituânia, 2015), A Obra do Século (La Obra del siglo), de Carlos Quintela (Cuba, 2015) e Terra Natal: Iraque Ano Zero (Homeland: Iraq Year Zero), de Abbas Fahdel (Iraque, 2015)

outubro 22, 2015 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

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Distopias e barbárie
por Pedro Henrique Ferreira

É praticamente inevitável que as nações que de algum modo viveram sob o ideário comunista no século XX lidem com as transformações de seus respectivos países a partir da abertura e o que esta proporcionou, seu significado mais profundo nos cenários e nas pessoas. A tônica de muitos destes filmes é a do desamparo e abandono, como se a guinada capitalista houvesse forçado um certo estado pós-apocalíptico. É algo presente no cinema de algumas figuras hoje um pouco mais conhecidas de nós, como, por exemplo, Béla Tarr, Zvyagintsev, Skolimowski ou Mungiu, mas também de figuras que são menos estabelecidas.

Um caso evidente é o de Sharunas Bartas. Inicialmente, encontramos poucos ou nenhum ponto de identificação com seu universo aqui nos trópicos. Razão pela qual não nos conectamos tanto com seu estilo, e a recepção de seus filmes no Brasil eventualmente passa um tanto mais batida do que deveria. Seu cinema, aparentemente difícil de ser tragado, é não obstante um dos mais importantes reflexos do destino do Leste Europeu pós-URSS. Seu mais recente, Paz para Nós em Nossos Sonhos, é um exemplar dos seus mais gélidos, lentos e silenciosos, o que em princípio pode afastar, embora quem esteja disposto a passar pela árdua experiência encontrará filme de alguma força. Não é das maiores obras de Sharunas Bartas, e segue em muito o diapasão de seu longa-metragem prévio, o noir O Renegado do Leste. Embora ainda carregue força particular, não está exatamente à altura de alguns de seus trabalhos anteriores (p.e.: Três Dias, A Casa ou Liberdade). Também não serve como mostruário de seu cinema, embora rapidamente notamos estar dentro de seu universo.

A premissa narrativa é uma viagem à casa de campo de um homem (encenado pelo próprio diretor), sua esposa (Yekaterina Golubeva) e sua filha (Ina-Marija Bartaite, filha biológica de Bartas). Todos vivem dramas e buscam remediá-los com a viagem. O longa-metragem ainda soma alguns outros personagens ao trio da família, outras figuras que vivem e participam do cenário melancólico. O que chama atenção é como a história destas figuras é construída isoladamente. A família convive no mesmo espaço e, no entanto, os dramas de cada um não têm muito nexo com os do outro. A câmera de Bartas não penetra nestes dramas: os observa como parte da superfície do mundo. Como em seus filmes anteriores, o diálogo é quase nulo. O vocabulário cinematográfico minimalista é feito de rostos, gestos, posturas e paisagens. A impressão que nos é deixada é a de um enorme vazio; uma poética construída em cima deste vazio, mais ligada à idéia de uma fotogenia epsteiniana com senso plástico mais contemporâneo (próximo, quiçá, ao de Leos Carax, com quem o diretor guarda proximidades pessoais e artísticas, embora aqui menos que em outros de seus filmes, como, por exemplo, A Casa) do que da angústia antonionesca. Não há incomunicabilidade, pois, para havê-la, pressupõe-se uma vontade não-atingida de diálogo. Os personagens de Bartas, no entanto, mais do que não se entenderem, mal se falam. Convivem meio que alheios uns aos outros, tratando-se quase como que objeto e cenário de suas vidas. Talvez a única exceção seja a violinista bergmaniana, cujo drama nos lembra um pouco o mal vivido pela protagonista de Através do Espelho – embora sem redenção, e quando tenta conversar sobre música clássica com a vizinha, logo nota ter sido uma má ideia sequer começar a investida.

As pequenas tramas vão se construindo paralelamente umas às outras até desaguarem numa tragédia, como no mais recente longa-metragem de Skolimowski. Em muitos sentidos, o filme de Bartas é uma versão mais bem-sucedida de 11 Minutos. A tragédia é também aparentemente conduzida pelo acaso, mas, no fundo, resultado de uma assertiva moral, porém menos externa às circunstâncias que no caso do primeiro, no qual o agente trágico era mais visivelmente um julgamento divino ex machina. Aqui não há Deus. São mais evidentemente as ações dos homens, cada um respondendo individualmente a seus próprios estímulos, dramas e fantasmas, como se os demais coabitantes daquele espaço fossem apenas uma outra parte do cenário. Em um dos discursos finais, uma das poucas falas de Paz em Nós para Nossos Sonhos, o protagonista diz que segue apenas suas vontades, que é assim que o mundo funciona e que qualquer outra atitude é simplesmente mentirosa. O discurso se quer realista e, no entanto, sua associação à tragédia posterior o torna um tanto cínico, como se este tipo de individualismo houvesse criado um mundo de sentimentos erráticos e vítimas aleatórias, como se o capitalismo houvesse nos conduzido moralmente mais próximo à barbárie. A trama minimalista é alçada à condição macro, mítica como nos filmes de Zvyagintsev. É uma visão dos descaminhos do Leste Europeu no mundo após a invasão da abertura de mercados, tornada, se não em dramas pessoais, justamente na exaltação do individualismo presente nos mais novos dramas da realidade cotidiana do país. A tentativa de reconexão com um sentido mais humanista é em vão; o final trágico, sua condenação moral (como em inúmeros dos produtos cinematográficos da região). A experiência comunitária algo distante, inconcebível no mundo moderno e capitalista, um produto de um passado morto e sonhado, referenciado no título.

Encontramos em A Obra do Século outro exemplar sobre o destino distópico de uma nação após o fim da União Soviética, embora quase oposto. Saltamos aqui para uma Cuba estagnada e sofrida, outrora o país de Terceiro Mundo que foi o principal investimento bélico do bloco comunista nas Américas. O que está em jogo é a contraposição entre uma república sonhada e uma realidade disforme. A dualidade é favorecida pelo dispositivo que contrapõe imagens documentais coloridas de propaganda da construção de uma usina nuclear titânica durante os anos da Guerra Fria e a encenação em P/B da vida cotidiana de pessoas que eventualmente se mudaram para uma cidade construída em torno da usina e que, hoje em dia, vivem em certo estado de sonambulismo. As imagens coloridas do passado anunciam desenvolvimento e vislumbram um futuro otimista. As imagens do presente são de uma cidade vazia, o resultado de um projeto naufragado, e revelam imobilidade torpe. A Cuba que enxergamos não é aquela do Caribe paradisíaco, mas um mundo em ruínas, que parou no tempo após o fim de seu principal investidor.

A trama acompanha três homens que vivem sob o mesmo teto. O engenheiro Rafael (Mario Guerra) mudou-se para a cidade durante a década de 1970 para trabalhar na usina. Desde o abandono do projeto, vive desempregado e sem ter dinheiro para sair de lá. Junto dele, moram seu pai, Otto (Mario Balmaseda), um senhor de opiniões retrógradas que acredita ainda mandar na casa, e seu filho, Leo (Leonardo Gascón), jovem que retornou ao apartamento do pai após separação traumática com a ex-mulher. Enquanto o exterior é um cenário amplo e vazio da cidade, centralizada pela monumental usina largada às moscas, o interior é um espaço apertado, que força as três figuras a estarem em contato o tempo todo. O lugar cria evidente conflito de gerações entre uma Cuba reacionária pré-regime, representada pela figura do avô, uma outra Cuba que participou do regime e hoje se vê frustrada pelos descaminhos da nação, representada na figura do pai, e ainda uma terceira Cuba jovem, apática, sem vontade de criar vínculos mais fortes com o passado e mais envolta em seus próprios dramas pessoais.

Os grandes méritos de A Obra do Século estão na capacidade inventiva e no olhar humano com a situação. O cenário apocalíptico não se torna desculpa para a frieza. Neste sentido, a atitude de Carlos Machado Quintela é quase oposta à de Bartas. Mesmo na medida em que paira sobre aqueles personagens um enorme sofrimento, nem por isso o cinema precisa enxergá-lo como tragédia. As situações são, com muita simplicidade, trabalhadas mais na chave do cômico, seja nas perguntas absurdas do avô, na autoindulgência do pai ou na falta de conexão com a realidade do filho. Mesmo o leit motif do peixe no aquário, figura que simboliza a paralisia daquela família, adquire mais conotações cômicas que propriamente pesadas. É como se o diretor cubano vislumbrasse que, mesmo na distopia, existe enorme capacidade de rir de si próprio. Eventualmente, mesmo genuínos laços fraternais. Em suma, que o cenário do abandono não elimina estados de espírito próprios ao homem em qualquer local ou situação, que não nos cobra necessariamente uma atitude realista diante da cena, que a inventividade e o sonho ainda são possíveis. Não à toa, A Obra do Século em alguns momentos flerta com a ficção científica, transformando o elefante branco em máquina, aproveitando-se do cenário pós-apocalíptico de forma semelhante, por exemplo, a Branco Sai, Preto Fica em alguns cenários da Ceilândia.

Quem mais se dedicou a mostrar a própria nação como um espaço pós-apocalíptico foi certamente o diretor Abbas Fahdel no impressionante documentário de cinco horas e meia Terra Natal: Iraque Ano Zero. As circunstâncias aqui são completamente diferentes das dos dois filmes mencionados anteriormente. Primeiramente, porque o Iraque não participou do bloco soviético; tornou-se inimigo dos EUA mais à frente. Depois, por causa do dispositivo. O longa-metragem de Fahdel investe no cinema direto, esboçando uma crônica de sua própria família nos momentos imediatamente anterior e posterior à invasão norte-americana. A Obra do Século também mostrava o passado, mas como projeto, não como cotidiano. Fahdel consegue extrair da primeira parte de seu longa-metragem um retrato fidedigno dos hábitos dos moradores de Bagdá, que faz também com que a segunda parte do filme se torne poderosa graças à oposição com a primeira.

Um comentário sobre o dispositivo: houve dois outros filmes exibidos no Festival do Rio que também fizeram experiências cinematográficas partindo do cinema direto e que, mais do que isso, se dedicaram a alçar o fato epistolar à condição de representante de uma fronteira geográfica/tempo histórico. No filme Em Jackson Heights, Frederic Wiseman se via diante de um bairro nova-iorquino e seus múltiplos espaços, demonstrando a democracia norte-americana ideal em estado vivo. Em Istambul – Crônica de uma Revolta, Pilavci e Gottschilich faziam remissão à cidade enquanto filmavam uma praça, extraindo consequências sobre um estado político mais amplo. Em Terra Natal: Iraque Ano Zero, o destino do país é apresentado pelo vai-e-vém de uma família. No primeiro caso, Wiseman se abstém completamente de intervir na narrativa. No segundo caso, as duas diretoras se engajam politicamente em um dos lados da disputa e recontam as experiências vividas, adicionando inclusive a voz em off que reorganiza as imagens. Já Terra Natal: Iraque Ano Zero faz curioso jogo em que o diretor filma praticamente sua vida, aceitando-se como personagem, embora sempre oculto por trás da câmera. Recusa-se a omitir opiniões certeiras sobre os muitos assuntos discutidos, embora fique evidente a recusa à invasão norte-americana tanto quanto ao governo de Saddam Hussein.

Este modo simples de filmar se revela de enorme complexidade. Envolve a tarefa árdua de dialogar ativamente com o que está em cena e extrair o sentido dramático. Propor as regras da partida sem interferir no resultado. A capacidade de criar distância das imagens que fazem ou fizeram parte de seu próprio repertório cotidiano nos recorda o trabalho de Jonas Mekas, embora Fahdel aqui tenha de lidar com o fato presente, e não com a memória. Graças a esta habilidade e ao cuidado que tem para não se tornar o protagonista da filmagem de sua própria vida, o diretor consegue inventar, por exemplo, um personagem tão carismático quanto o do sobrinho, que, de figura ocasional, é enaltecido a representante de um mundo, seu destino tornado a condição de toda uma geração.

O título faz menção à obra de Rossellini, Alemanha, Ano Zero, em qua a vida de um outro menino encarnava o fantasma germânico do imediato pós-guerra. A morte dele era a tragédia do espírito e a expiação de um destino histórico. Em muitos sentidos, é o mesmo que acontece com o sobrinho em Terra Natal: Iraque Ano Zero. Do mesmo jeito que o personagem rosselliniano, a criança se porta como adulto. É o herdeiro de uma tradição, um tanto velha e cheia de verdades. O tempo todo, incorpora um espectro maior que seu pequeno corpo. O que chama atenção principalmente é como o longa-metragem consegue explicitar que a mudança sofrida por Bagdá após os bombardeios norte-americanos não está somente nos escombros de uma antiga civilização ou no cerceamento imposto pelo exército invasor. O Iraque passa a ser uma terra caótica e sem lei. Tiroteios são cotidianos. O desemprego cresce. Os moradores se adequam a esta nova realidade imposta pela guerra da forma como podem.

Mais importante que isso, a mentalidade começa a se transformar com a iminência da guerra. As crianças já brincavam de dar tiros e jogar bombas. Um sentido de barbárie penetra sorrateiramente naquele microcosmo. O herói rosselliniano de Alemanha, Ano Zero agia inconscientemente como que por brincadeira. A certa altura, a brincadeira se torna realidade. O mesmo acontece aqui. A guerra não destrói apenas os cenários. Ela inventa novas paisagens mentais. Transforma o mundo não somente a partir de uma disputa pelo poder, mas principalmente através do repertório de imagens que povoa o imaginário comum. Paulatinamente, acostumamo-nos a viver em outro mundo, com outras regras, onde tiroteios, por exemplo, são dados comuns. O que conduz Terra Natal: Iraque Ano Zero a seu momento ápice, surpreendente justamente porque passamos a nos acostumar com a aquilo tudo, o momento em que a tal brincadeira enfim ganha realidade. Neste sentido, o suicídio do menino em Alemanha, Ano Zero é um correlativo da morte do menino iraquiano. Ela surge como uma espécie de martírio mais amplo, uma revelação de que certas coisas foram perdidas.

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