Parque do Povo (People’s Park), de Libbie D. Cohn e J.P. Sniadecki (EUA/China, 2012)

maio 16, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

peoplespark
A política da permanência
por Filipe Furtado

Qual o valor que a câmera empresta ao que ela registra? Parque do Povo de Libbie D. Cohn e J.P. Sniadecki é um filme assombrado por esta questão. É uma dúvida que anima muito do trabalho dos filmes do Harvard Sensory  Ethnography Lab, grupo organizado pelo cineasta e professor Lucien Castaing-Taylor, responsável por alguns dos documentários mais excitantes dos últimos anos. Como nos filmes do grupo o primeiro gesto é sempre o de buscar uma imagem pouco ou nada registrada, acaba-se indiretamente jogando o procedimento ao primeiro plano.

Aqui em Parque do Povo, temos um filme-dispositivo muito fechado sobre si mesmo: um plano sequencia de 75 minutos rodado no Parque do Povo de Changdu, China. A diretora Libbie D. Cohn empunhou a câmera sentada numa cadeira de rodas, enquanto seu co-diretor, J.P. Sniadecki, a empurrou parque adentro a filmar tudo e quem passasse diante deles.  Lendo sobre o filme, descobrimos que este que chegou até nós é a 19º de 23 tentativas da dupla de realizar seu longa, e de que o plano originalmente se estendia por bons minutos para além do ponto que eles decidiram encerrar. Trata-se de um filme-truque com um claro limite, mas a sua maneira não deixa de ser um ponto de partida e não somente um projeto fechado, muito porque há uma generosidade politica em todo o projeto coletivo do Harvard Sensory Ethnography Lab que impede isso.

Algumas observações inevitáveis sobre Parque do Povo:

– Trata-se de um filme pobre. Cohn e Sniadecki não escondem que há um elemento amador na empreitada. Sua pós-produção jamais trabalha no sentido de profissionalizar o filme. O resultado final cuidadosamente reproduz um plano-sequência num domingo num parque;

– A opção de colocar a câmera sobre uma cadeira de rodas no lugar de um tripé é outro elemento do lado amador do projeto, mas um que traz um dado estético muito claro. Em um projeto com inegável elemento voyeurístico como este, espera-se normalmente contar com um plano na altura dos olhos; mas, distante disso, a imagem de Parque do Povo é baixa, sua perspectiva é inesperada, o que por vezes quebra com o caráter mais repetitivo de alguns dos seus momentos e procedimentos.

Parque do Povo é um filme irregular. Nem tudo que registra é igualmente interessante. É um dado óbvio e inevitável com um dispositivo como este, mas um dos seus aspectos mais interessantes é justamente como o filme incorpora a sua própria inconstância na sua narrativa. Podemos dizer que é um filme sobre uma câmera em busca de objetos sobre as quais possa repousar. Seu grande suspense é justamente como Cohn e Sniadecki encontraram um fecho impactante o suficiente para o filme, que justifique o arco desta trajetória. O filme parte do que deveria ser sua maior fragilidade e a transforma no seu maior mérito. É um filme sobre o processo de filmar, sobre esta dança complexa entre aqueles que se colocam diante da câmera e a imagem final que o filme nos traz.

Muito do interesse do filme reside ai. Sniadecki e Cohn não tem sobre seu filme o mesmo controle que, digamos, Michelangelo Frammartino apresenta em seu As Quatro Voltas. Os diretores não podem dominar os elementos da sua mise en scène com a mesma desenvoltura, o que faz um filme por necessidade aberto (não à toa, em algum lugar existe um hard drive cheio de versões abortadas ou insatisfatórias de Parque do Povo).

Seria intelectualmente desonesto afirmar que Parque do Povo não é um filme dispersivo, pois há decerto tempos mortos nele em que o filme pouco pode fazer para tornar o prosaico mais do que ele é. O cinema contemporâneo é rico até demais em filmes que parecem acreditar que um interesse ontológico de certos momentos vão torná-los privilegiados por si mesmos. É uma crença que resvala numa fragilidade, na constatação de que nem todos os olhares são dotados da força de um James Benning.

A solução maior de Sniadecki e Cohn para seu dilema da falta de controle sobre a ação dentro do quadro é tão simples como elegante: seu movimento constante. Parque do Povo está em constante movimento, seguindo em diante, e deste ato brota uma curiosidade de olhar que o carrega mesmo nos momentos em que o interesse diminui. O filme nos move não por aquele detalhe perfeitamente posicionado que pega nosso olhar de surpresa, ou por imagens assombrosas, mas pela sua curiosidade. Apesar de ser um longo plano, é importante destacar que se trata de um filme com dois cineastas e um encontro de dois olhares: a graça de Parque do Povo brota justamente do diálogo entre a imagem e o movimento, entre a câmera de Cohn e o empurrar da cadeira de Sniadecki. O processo encontra uma dialética, ganha um corpo, o prosaico encontra uma direção, por mais limitado que o processo dos realizadores aparente ser. Parque do Povo é um filme que escreve com a câmera.

Na sua proposta de um filme em plano-sequência e na forma com que aposta constantemente na relação que estabelecemos com ele, Parque do Povo traz à memória inevitavelmente o Arca Russa, de Sokurov, outro tipo muito diferente de experimento em plano-sequência. São filmes separados por uma década que viu nossa relação com a imagem digital mudar de forma radical, de uma novidade em 2002 para a forma básica com a qual consumimos hoje imagens em cinema (sobretudo o de festivais), independente da captação inicial. Não surpreende que o filme de Sokurov existisse na sua essência como um triunfo da técnica, enquanto este trabalho de Cohn e Sniadecki possa se assumir quase amador (suspeito que, caso realizado em 2001, Parque do Povo seria recusado pela maioria dos festivais como um vídeo, e não cinema).

São filmes que não poderiam existir em pontos mais distantes na extensão da idéia do plano-sequência de longa duração, principalmente no significado político de se rodar um filme de um plano só. Pois em Sokurov, o plano-sequência existe como uma negação do contracampo como um desejo anti-Eisensteniano. A sua recusa da montagem é também uma recusa de diálogo, e sua imagem continua a perfeita expressão visual do decadentismo aristocrático que sempre esteve no centro do cinema de Sokurov: tratava-se de usar o plano sequencia para expurgar o fora de campo (leia-se: a revolução russa), procurando encerrar o espectador num museu. Como, dada a maestria de Sokurov, sua apropriação do plano-sequência se tornar um ideal incontornável da forma, Parque do Povo acaba por, mesmo sem a intenção, promover- lhe uma resposta tardia: resgata-se aqui o sentido baziniano do plano de longa duração. Podemos finalmente retomá-lo no que traz não de tecnicismo, não da primazia do autor, mas a do olhar, a do espectador diante da imagem. No movimento constante de Parque do Povo, do diálogo que se estabelece na troca de olhares entre Cohn, Sniadecki e mesmo os muitos chineses que cortam seu plano, o plano-sequência escapa da clausura e recupera sua liberdade.

Para o que os diretores voltam esta câmera, porém? Um parque público em Changdu, uma das maiores cidades chinesas (cerca de 14 milhões de habitantes) na região central do país, conhecida pelo apelido de “terra da abundância”. As imagens da dupla Cohn/Sniadecki encontram uma China em intervalo, um centro urbano em descontração. É uma imagem que nem a mídia ocidental nem o cinema chinês revelam com frequência. Os corpos que Parque do Povo filma se encontram em repouso: sentados em bancos de parque, deitados na grama, dançando, jogando conversa fora (tão desimportantes que o filme sequer se preocupa em usar legendas). Se o cinema em geral tende a desvalorizar estas ações, isto vale em dobro para um espaço como a China, cujas imagens são inevitavelmente acompanhadas de uma narrativa construída sobre o pêndulo progresso/opressão. As imagens de Parque do Povo são retiradas deste contexto e se permitem respirar: a ideia de lazer recupera um caráter libertário. Se a China se tornou paradoxalmente uma das nossas imagens dominantes da ideia de capitalismo em ação, Parque do Povo interrompe este fluxo.

O filme não deixa de abrir um dialogo interessante com The Great Cinema Party, de Raya Martin, outro dos principais lançamentos do ano passado, também um filme conceitual construído a partir de corpos em repouso nos quais o filme encontrava uma permanência histórica. No filme de Martin, isto se dava na relação entre a idéia de lazer e o peso da história que o seu espaço histórico trazia consigo, que o filme resgatava justamente promovendo uma festa entre amigos ali; já em Parque do Povo, o espaço é resgatado pelo intervalo; somos dotados o tempo todo da certeza de que há uma grande cidade em ação no fora de campo, mas ali, naquele espaço dentro do quadro, o privilégio será outro. As imagens aqui também são assombradas pela História, mas cabe ao filme buscar pontos de fuga para ela – seus corpos em repouso se dobram como corpos de resistência. Se Parque do Povo é um filme profundamente prazeroso, é porque a coreografia dos corpos e a relação entre eles e a câmera dá vazão a esta interrupção.

Há, sem dúvidas, um elemento de intrusão nestas imagens: há, frequentemente, olhares diretos para a câmera que às vezes sugerem curiosidade e, por outras vezes, irritação (o filme jamais nos permite esquecer que os cineastas não são elementos assimilados à sua paisagem; que são literalmente um olhar estrangeiro). Não se trata de um filme sobre o cotidiano chinês – algo que já seria impossível para um par de cineastas locais – mas um que lhe arranca da sua posição natural para um espaço histórico-político muito particular. Há um elemento de performance em vários pontos de ação, que, não por acidente, se abre e se fecha acompanhando danças. O diálogo franco entre Cohn e Sniadecki e tudo que filmam é naturalmente artificial e traz com ele um elemento de coreografia muito forte, presente tanto no movimento da câmera como nos diversos tipos que preenchem o plano. O movimento em direção ao espetáculo musical só reforça tal princípio, com a disposição de reposicionar o prazer do fim de semana no parque como peça política.

Há um elemento autoconsciente muito forte em todos os filmes do Harvard Sensory Ethnography Lab (e é útil pensá-los em conjunto, já que eles parecem ser realizados desta maneira; não à toa, são filmes sempre feitos a dois). São invariavelmente filmes-processo em que o procedimento de registro é jogado para primeiro plano. Para filmes em que, visualmente, há um elemento de pesquisa muito forte – haverá sempre o desejo de buscar espaços, comunidades, trabalhos dos quais se ressente uma ausência de imagens – é notável o peso que todos eles atribuem ao registro em si. A câmera nestes filmes, mais que uma intrusa constante, é co-protagonista sempre. Os primeiros filmes do grupo a circular, Sweetgrass e Foreign Parts (este co-dirigido por Sniadecki) se ocupavam em reverter um desaparecimento, se voltando para atividades próximas a sumir (a trajetória dos boiadeiros que guiavam o gado em Montana; uma comunidade prestes ser deslocada por um projeto de reurbanização em Nova York) e tentava interrompê-las pelo viés da permanência das suas imagens. Parque do Povo não tem uma intervenção tão direta – seu parque seguirá lá, afinal – mas é animado pelo mesmo sentimento. Liberado da intervenção direta, Parque do Povo reforça ainda mais a política da permanência que anima estas imagens. Se há um peso muito grande para o papel da câmera em todos estes filmes, é porque toda a sua política está entregue a este objetivo de traduzir uma atividade – seja dançar num parque chinês, seja tocar um rebanho de ovelhas no interior dos EUA – em uma imagem. A idéia inicial do documentário como um espaço científico de registro redimensionado pela crença na permanência da imagem cinematográfica é por excelência politica. O Willets Point pode dar lugar a condomínios de luxo, o relaxar no parque pode dar espaço ao trabalho do dia seguinte, mas suas imagens resistem.

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