Panorama, Forum e Forum Expanded

março 11, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

por Pablo Gonçalo

Upstream Color, de Shane Carruth (EUA, 2013)

upstreamcolor

Upstream Color é a segunda obra de Shane Carruth e gerou, recentemente, entusiasmo e frustrações na sua estréia no festival de Sundance. Exibido na mostra Panorama da Berlinale o filme tenta construir uma história engenhosa, complexa e sofisticada guiada praticamente por encadeamento de sensações e a abstração cara às composições sonoras. Em termos de plot – se é que podemos chama-lo assim, conta-se a bizarra trajetória de Kris (Amy Seimtz) quem, sem saber, toma uma pílula que contém uma peculiar larva dentro. Sob os efeitos dessa larva no seu corpo, Kris será hipnotizada, seqüestrada, roubada, e vivenciará uma estranha cirurgia junto com um porco. O curioso é que a tal cirurgia seria a base de uma composição que assume uma importância central para o filme. Carruth narra, assim, um ciclo, um fluxo de transições para, de forma improvável, retornar à larva, que, por sua vez, caminha dentro de uma orquídea azul. Além de inquieta, essa história situa-se entre seres vivos e objetos, e, apenas nos seus intervalos concentra-se em Kris pois, por meio de uma metempsicose, ressalta as pulsações que reverberam dentro do seu corpo e entre os corpos que a rodeiam.

Embora crie um intrigante e misterioso ambiente por meio dessa história – um clima embrionário de uma ficção científica, o forte de Upstream Color de Carruth não reside na sua história. O  filme decai um tanto ao criar um contraponto num encontro entre Kris e Jeff (interpretado pelo próprio diretor), que desperta para uma história amorosa pouco convincente e que acaba adquirindo uma dimensão superestimada. Com todo essa argamassa, Carruth acaba apostando numa montagem ágil, conduzida pelo som, e cheia de raccords sensíveis, inteligentes e poéticos. É precisamente na edição do filme que encontramos a sua força, já que, por exemplo, toda essa trama, que mais parece um poliedro, nos é contada com pouquíssimas palavras e ainda assim ela cria um ambiência intrigante que convida para uma entrada imediata.

Não é meramente acaso que a liga do filme seja dada pelo som e por um tom misterioso. É na textura dos seus raccords, entre os sons das coisas e os seus sentidos, tão voláteis, que as redes cênicas são costuradas. Upstream color é um filme de pele e mutações. Pele por apostar mais nas sensações, nos afetos e numa emotividade do mundo, para além de um antropocentrismo dramático. E as mutações revelam um Carruth no desassossego de filmar o processo de um devir, os fluxos de transformações, incessantes, cíclicos, ora repetidos, ora criando novidades, que são regidos por combinações caóticas. Se há um experimentalismo narrativo em Upstream Color ele encontra sua melhor forma quando guiado por esses preceitos filosóficos que lembram os conceitos de Withehead e algo de Deleuze, onde há uma força estética entre as coisas, na natureza, que, apenas por acaso, e numa dimensão distinta, é traduzida por retinas humanas.

No entanto, o filme se perde bastante quando tenta criar uma tradução dessas transformações para ciclos de poderes. Nesses instantes, esse segundo filme de Carruth adquire uma semelhança com Pi, de Darren Arronfski, obra bem interessante que, permeada pela matemática, também aposta numa relação entre os fenômenos físicos e os psíquicos. Porém, quando apela ao ímpeto de criar alegorias sobre uma rede de poderes acaba resvalando em clichês desnecessários. Upstream Color merece ser visto com olhos curiosos, abertos para esses ricos encadeamentos sensíveis entre corpos não-orgânicos e orgânicos. Somente assim consegue-se relevar os estranhos deslizes que ele comete.

Yugoslavia, How Ideology Moved Our Collective Body,  de Marta Popivoda (Sérvia/França/Alemanha, 2013)

Yugoslavia

Lançado no Forum Expanded, esse filme passou desapercebido dos debates gerados pela Berlinale. É, no entanto, um dos registros mais notáveis sobre a transição ideológica, social e estética da Iogulsávia de Tito, nos anos setenta, para a guerra civil e seu desmembramento vivenciado logo após a queda do muro de Berlim. Feito basicamente por imagens de arquivos, o filme tem uma epígrafe de Siegfried Kracauer ressaltando o seu conceito de ornamento da massa, no qual o crítico da escola de Frankfurt enfatiza como a indústria cultural cria dinâmicas de uma massa de anônimos que encena para si mesma.

Narrando em primeira pessoa, Marta Popivoda, a diretora, inicia sua obra com uma imagem na qual ela mesma dança, quando menina, uma coreografia em homenagem à Iugoslávia e a Tito. O ano é de 1989, pouco antes de eclodir a guerra civil, e hoje ela compreende com mais clareza a força daquela cena, os significados daquele momento. Num corte abrupto, o filme volta para a construção do estado socialista, após o final da segunda guerra mundial, e sua tradução estética na cerimônia da entrega da tocha da juventude para Tito. É sob olhar das mudanças estéticas dessa celebração que Popivoda nos conta a recente e trágica história política do seu país. Ali, a festa da juventude ganhava uma megalomaníaca organização coreográfica, com milhares de jovens dançando e cantando simultaneamente, dentro de um estádio, para, ao final, entregarem a tocha ao líder supremo.

Vindas da televisão estatal, as imagens de arquivo são pérolas que falam por si mesmas. Com o decorrer do tempo, a festa vai reverberando os diversos momentos vividos por esse povo. Quando Tito morre, seu velório é encenado de uma maneira coreográfica, com longas pausas, silêncios, enquanto o trem passa, solene, levando seu caixão a Belgrado. Com delicadeza, Popivoda mostra respostas estéticas  – seja espontâneas ou construídas – ao estilo de vida socialista. No ano de 1988, por exemplo, aquela mesma celebração da juventude já está sem líder, com danças que evocam solos e um forte encontro com a música pop, e a encenação está tomada por referências apocalípticas. Seria o prenúncio do neo-liberalismo e de uma guerra sangrenta. Com isso, o filme tece, ao mesmo tempo, reflexões interessantes sobre o socialismo no seu desdobramento histórico, assim como uma face amarga da experiência do individualismo contemporâneo.

Matar Extraños de Jacob Secher Schulsinger e Nicolás Peredas (México/Dinamarca, 2013)

Matar Extranos 2

Um filme-dispositivo sobre a idéia de revolução. Esta linha talvez resuma Matar Extraños, co-produção da Dinamarca com o México, exibido no Forum. No letreiro inicial, os diretores confessam que queriam fazer um filme sobre a revolução mexicana com pessoas que realmente vivenciaram essa experiência. Como não encontraram ninguém, apelaram para atores e tentaram achar o tom da encenação desse fato. Inicialmente, a idéia é sedutora, cheia de ironias e extremamente promissora. Como num filme de ensaios, os atores lêem textos sobre o conceito de revolução vindos de Hannah Arendt, músicas dos Beatles e outras fontes que, cheias de sarcasmo, são citadas ainda no início do filme.

De forma aberta, os diretores estão criticando um possível despropósito de filmes de e sobre revolução no contexto contemporâneo. Assim, obviamente, não vemos ações, sangue, tiros ou gente morrendo pela causa, mas tédio e ócio encenados nos casarões mexicanos. Paulatinamente, o filme volta-se para o ridículo sobre o seu próprio gesto de encarar essa idéia como uma força estética ou política. O que pode parecer, numa primeira impressão, um ponto de vista conservador ganha potência, talvez, de questionamento. Há um abismo entre a revolução, sua teoria, sua prática, sua encenação.

Embora interessante, Matar Extraños pára exatamente nesse ponto, para nada mais apresentar além dessa constatação e provocação. Toda uma potente dramaturgia, mesmo esta da não representação, permanece estática, num tempo que ultrapassa o suportável. Como um amante do box, o escritor argentino Julio Cortazar dizia que existem certas obras, como os contos, que devem atingir o leitor com um nocaute. Outras, contudo, como nos romances, devem ganhar o leitor aos poucos, com pontos a cada round. Cortazar não possui nenhuma relação com esse filme de Jacob Secher Schulsinger e Nicolás Peredas. No entanto, esses diretores não apostam no nocaute tampouco nos pontos. Eles mostram, talvez, o ring vazio, a arena abandonada, o campo de uma revolução, para eles, desprovida de sentidos.

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