Os Senhores da Guerra, de Tabajara Ruas (Brasil, 2014); e A Estrada 47, de Vicente Ferraz (Brasil/Itália/Portugal, 2013)

março 1, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Marcelo Miranda

Senhores da Guerra (2014), Tabajaras Ruas

Senhores da Guerra (2014), Tabajara Ruas

Campos de batalha
por Marcelo Miranda

“O cinema é um campo de batalha”, dizia Samuel Fuller a Jean-Paul Belmondo durante uma festa em O Demônio das Onze Horas (Jean-Luc Godard, 1965). A metáfora do cineasta serve a toda uma arte, mas estava também associada à sua experiência em campos de guerra, como soldado, e à abordagem do assunto em filmes seus como Capacetes de Aço (1951) e Baionetas Caladas (1951), depois retornando de maneira ainda mais magistral em Agonia e Glória (1980). Retomar Fuller é apropriado neste primeiro contato com dois filmes brasileiros exibidos no Festival de Gramado 2014. Em ambos, a guerra – ou o cinema como campo de batalha num sentido quase literal – permite a reflexão sobre a incorporação brasileira de gêneros tão fincados em cinematografias estrangeiras que, de repente, surgem num português de sotaques variados e em temáticas constituintes da formação ou solidificação do país enquanto nação.

A representação histórica, por características muito próprias, tende a esbarrar em obstáculos por vezes intransponíveis. O maior deles talvez seja o equilíbrio entre a autenticidade do relato de fatos e a encenação. Algum ruído surge quando se percebe a preocupação em fazer do filme uma aula estendida de determinados aspectos do passado enquanto se persegue o “entretenimento” suficiente para manter atentas as plateias curiosas e os eventuais especialistas no assunto. Vistos numa mesta noite, Os Senhores da Guerra, de Tabajara Ruas, e A Estrada 47, de Vicente Ferraz, cada um narrando fragmentos da história brasileira, somam elementos de um certo travamento da fruição que corroboram a ideia de Paulo Emilio Sales Gomes de que o cinema brasileiro se caracteriza por uma condição permanente de subdesenvolvimento. Muitas vezes é a consciência dessa condição que, afinal, faz do filme em questão um objeto específico na sua singularidade.

O caso do gaúcho Os Senhores da Guerra exemplifica a obsessão informacional do relato: mais importante do que encenar ou construir um mundo pelo qual a História atravesse, é a História que é submetida e atravessada pelo olhar anterior do realizador. Percebe-se a cada cena e diálogo do filme uma preocupação constante, muitas vezes exagerada, em detalhar os movimentos, as decisões, as estratégias e os caminhos dos participantes da guerra civil que se abateu no Rio Grande do Sul em 1923 e 1924, opondo maragatos e chimangos durante a Revolução Federalista do estado. O detalhamento em si não necessariamente seria um problema na base – vide Lincoln (Steven Spielberg, 2012), para ficar num exemplo estadunidense bastante recente. Os Senhores da Guerra, porém, aproveita pouco as potencialidades de seu próprio ponto de partida ao fazer os atores inadvertidamente declamarem textos que mais se parecem notas de rodapé de livros escolares. Com isso, a mise en scéne se engessa em planos anódinos, cuja funcionalidade acaba por ser apenas expor didaticamente do que se trata o texto, e não a cena. O filme acaba por se inserir naquilo que o sociólogo português Moisés de Lemos Martins chama de “pensamento substancialista”, no qual se valoriza “aquilo que na história aparece finalizado em coisa ou estado de coisa, assenta no paradigma da visão e tem um registro epistemológico”. Lida-se, portanto, com conceitos relacionados à Verdade, no sentido de aquilo que é exposto na tela, mesmo ficcionalizado, perseguir a utopia de se assemelhar ou aparentar ao máximo uma reconstituição fiel e justa do que efetivamente teria acontecido. Cartelas informativas, letreiros identificadores de personagens reais e suas respectivas funções (algo também usado por João Jardim em Getúlio) e poemas narrados em off por uma voz que soa como a instância do dono do conhecimento são elementos que o filme se utiliza para fazer de Os Senhores da Guerra um relato ilustrado de sua Verdade.

Nessa configuração, escapa ao filme quais são, afinal, suas prioridades. Especialmente pela articulação pouco orgânica da montagem, muda-se de um registro a outro sem nenhuma parcimônia, com o corte servindo para ligações que não se conectam nem no contexto do relato nem na construção de um cenário elaborado ou fluido. Corta-se por cortar, para que a cena seguinte seja logo incorporada à soma das anteriores ou mesmo comente um acontecimento simultâneo. Às cenas de batalha – calcadas em produção grandiosa, como se evidencia na quantidade de figurantes e no razoável domínio da câmera ao registrar os choques de armas e corpos –, elimina-se o som direto para a inserção do off poético a resumir a cena. O recurso esvazia os dois aspectos (imagem e som) ao tentar impor um olhar que destoa da tecnicidade presente em todo o restante do filme. Na ânsia por dominar a Verdade que acredita conter, Os Senhores da Guerra se sufoca nas próprias manobras de narração e acaba por não permitir a cena alguma efetivamente conter qualquer tipo de presença ou existência para além da exposição informativa.

A Estrada 47 (2013), Vicente Ferraz

A Estrada 47 (2013), Vicente Ferraz

A Estrada 47, de Vicente Ferraz, contextualiza seu enredo em imagens de cinejornais que abrem e fecham o filme e em alguns letreiros ainda no prólogo. A ação se ambienta nas estradas da Itália de 1944 e segue um grupo de pracinhas brasileiros da FEB durante o conflito contra o Eixo. A Ferraz, interessa olhar os personagens em filigrana, entendê-los e transmitir seus sentimentos, mais que suas motivações. O filme expõe a questão central – o grupo, especializado em desarmar minas terrestres, deve rumar para uma estrada minada e abri-la aos Aliados – e logo trata de criar pequenas situações dramáticas que, delimitadas pelo enredo inicial, são desenvolvidas uma a uma de maneira a formar um contexto maior de dramas íntimos. Ferraz se insere abertamente no gênero do filme de guerra como pretexto para um estudo de personagens. Existe cuidado de produção na autenticidade, muito presente nas cenas em locação e nos detalhes técnicos de uma direção de arte que faz de tudo para explicitar a reconstrução de época, mas o enfoque mais assumido vai ser sempre nas reações de cada membro do grupo às situações nas quais eles se envolvem. Voltando a Moisés de Lemos Martins, tem-se em A Estrada 47 a tentativa acentuada do “pensamento da individuação”, que se inscreve na “lógica da diferença (…) e assenta no paradigma do fluxo, em que consistem a vivência, a informação, o movimento e o processo”.

Um dos personagens é um repórter de guerra que registra, por texto e foto, os acontecimentos que presencia. O trajeto de sua máquina fotográfica é sintomático das escolhas de abordagem de Vicente Ferraz: no desfecho, o aparelho é destruído por um tanque. O jornalista perde as imagens. Sobram a memória, a visão subjetiva, as lembranças da vivência ao lado dos outros soldados. Diferente da ação patriótica de A Conquista da Honra (Clint Eastwood, 2003), em que os combatentes se eternizam por uma imagem falseada registrada em fotografia, os movimentos e atitudes dos pracinhas brasileiros permanecerão visualmente anônimos. Não haverá nem conquista nem honra. Apenas sobrevivência e fios de memória que se juntam para formar o mosaico que será, afinal, o filme ao qual assistimos. A ausência de uma Verdade absoluta em A Estrada 47 repousa nesse hiato (no fluxo) entre uma máquina fotográfica perdida e os fios de recordação de um grupo enfrentando os horrores do campo de batalha.

Por ser coprodução entre Brasil, Portugal e Itália, A Estrada 47 tem uma atmosfera “universal”, com os elementos de linguagem facilmente identificáveis a filmes de guerra mais tradicionais em que o movimento se dá de maneira centrípeta, partindo do contexto mundial de conflito para chegar ao núcleo interior dos protagonistas. Na Neblina (Sergei Loznitsa, 2012) é uma referência perceptível de imediato, tanto no ritmo quanto na estruturação em “road movie de guerra”, no que deve relações também à obra-prima Vá e Veja (Elem Klimov, 1985) e à segunda parte de Nascido para Matar (Stanley Kubrick, 1987). O que inexiste em A Estrada 47 em relação a estes títulos que ele abertamente presta tributo (mesmo num nível inconsciente, no sentido de lidar com todo o imaginário e iconografia de um gênero tão antigo quanto o faroeste) é o teor mais profundamente crítico, mordaz ou irônico. O filme de Vicente Ferraz se pauta pela afetividade, pela noção de companheirismo e união, pelo olhar antibelicista que carrega na estruturação da linguagem em paralelo à “mensagem” tão cara a filmes como este. De alguma forma, por esse viés, Ferraz segue bem acompanhado, a considerar o incontornável A Grande Ilusão (Jean Renoir, 1937).

Apesar de se filiar um tanto à vontade aos vários títulos citados acima, A Estrada 47 ainda demonstra, nas entrelinhas do relato e da encenação, um mal-estar não facilmente assimilável. Os “tipos” brasileiros estão todos lá – o representante da classe média que vai à guerra como voluntário para orgulhar o pai (ecos de Platoon), o nordestino como alívio cômico, o negro sambista como bucha de canhão, os estrangeiros desertores que são essenciais para que o objetivo dos pracinhas seja alcançado. A separação de personagens por caracterizações tão facilitadas é elemento comum em trabalhos do gênero e aqui tem um escopo brasileiro que diminui o frescor do fluxo perseguido no tom do filme, no que afinal o aproxima do estado de subdesenvolvimento falado por Paulo Emílio. É como se ao filme, apesar de ele dialogar num contexto de gênero muito maior, não fosse dada a chance de não se parecer com um filme brasileiro. Esta impressão vale também à frouxidão das cenas, em geral bem delineadas logo de início para, minutos depois, não se sustentarem no que tinham de mais potente. A montagem acaba por ter a função de “salvar” as sequências: no ato do corte entre uma e outra, o filme se permite um respiro mais livre e volta a proporcionar a iminência de uma boa cena que efetivamente não acontece.

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