Os filmes finais de Werner Schroeter: Deux (França/Alemanha/Portugal, 2002); e Nuit de Chien (Portugal/Alemanha/França, 2008)

maio 5, 2014 em Em Pauta, Filipe Furtado

Nuit de Chien (2008), Werner Schroeter

Nuit de Chien (2008), Werner Schroeter

A resistência na penumbra
por Filipe Furtado

Quando da morte de Werner Schroeter, em 2010, boa parte dos obituários começava por apontar sua posição de grande outsider do Cinema Novo Alemão. Salvo por um período de pouco mais de uma década, entre O Reino de Nápoles (1978) e Malina (1991), os grandes festivais europeus sempre demonstraram encontrar pouco uso para o cinema de Schroeter. Semanas antes de sua morte, ele recebeu um prêmio especial no Festival de Berlim, “pelos feitos na carreira como experimentador radical e grande outsider do Cinema Novo Alemão”. É uma insistência curiosa, especialmente quando pensamos a carreira de Schroeter como um todo. Afinal, num primeiro contato, pode-se argumentar que seus filmes não são tão políticos quanto os de Alexander Kluge ou abertamente confrontadores quanto os de Rainer Werner Fassbinder. Porém, há algo no seu cinema – generoso e democrático, a operar sempre a partir de um princípio de colagem e apropriação, filtrando as mais diferentes fontes e influências por uma sensibilidade muito própria – que sempre funcionou como uma afronta. O apelo de boa parte destes filmes nasce de uma mudança de percepção de o que seria político no cinema.

Ao pensarmos as diferenças entre a geração alemã à qual Schroeter pertence e a maior parte dos cinemas novos que surgiram nos dez anos anteriores, elas são oriundas de uma percepção do cinema não mais como um espaço de possibilidades, mas como uma arte à qual se chega após um fracasso, uma busca por dar sentido a uma terra desolada. Neste contexto, essa posição marginal de Werner Schroeter é ainda mais relevante. De certa maneira, o cineasta a quem Schroeter mais remete seria Warhol, mas um Warhol quintessencialmente europeu, no lugar de americano: o mesmo gosto pelo performático, por uma câmera que desnuda a presença, por uma filmagem que aproxime o gesto teatral de uma ênfase no corpo, e o mesmo princípio de construir seus filmes a partir do detrito cultural – apesar de as referências de Schroeter serem bem mais variadas e ricas, tão à vontade no grande teatro quanto no cabaré.

Deux (2002), Werner Schroeter

Deux (2002), Werner Schroeter

Werner Schroeter passou boa parte das suas últimas duas décadas de vida se dedicando a lutar contra câncer e à direção de teatro e ópera. Entre os problemas de saúde e os de financiamento, passa a filmar uma vez a cada cinco anos. Diante dos seus dois últimos filmes, Deux (2002) e Nuit de Chien (2008), é notável que seu olhar se revele tão particular quanto os filmes foram pouco visíveis (creio que nenhum dos dois foi exibido nos festivais nacionais, por exemplo), a despeito de estrearem em grandes eventos, como Cannes e Veneza. Nestes trabalhos finais, é revigorante o desinteresse completo de Schroeter em parecer contemporâneo ou em fazer qualquer concessão para os modismos do momento, mais interessado em simplesmente dar sequência ao trabalho de pesquisa de linguagem que iniciara décadas antes. Ambos parecem saídos de outro momento da história do cinema, ao mesmo tempo em que estão bastante ligados aos seus respectivos momentos na história européia. Deux e Nuit de Chien sugerem ser filmes de resistência justamente na medida em que acreditam ser necessário ignorar tudo à sua volta. Os filmes parecem dizer que, se o cinema abandonou Schroeter, a perda é toda do cinema. Num cenário cada vez mais codificado, sofrendo de uma ansiedade de encaixe nas formas de consumo preponderantes, a curva final da obra de Schroeter é movida pela molecagem de um mestre veterano que não podia estar menos preocupado com o que se pensa dele.

O crítico norte americano David Ehrestein descreveu Schroeter como “o maior cineasta alemão do pós guerra, mas também o maior italiano” e na provocação encontra-se um dos elementos essenciais do seu cinema: de que, ao mesmo tempo em que boa parte dele está ligada diretamente à Alemanha, Schroeter é um destes cineastas que, como Renoir ou Ophüls, pertencem a toda a Europa, sem com isso parecer forçar algum diagnóstico sobre o continente (neste sentido, é o anti-Win Wenders – aquele que desesperadamente tenta pertencer a tudo, e termina não pertencendo a lugar algum). Esse é um sentimento especialmente forte nestes últimos filmes, com a trama dispersa por múltiplas locações em Deux, e o enredo alegórico de Nuit de Chien que, tendo sido rodado em Portugal, por princípio não pertence a lugar nenhum. São dois filmes assombrados pela sensação de não-pertencimento, que transformam o desraizamento num mote central – e é interessante que ambos sejam co-produções internacionais, modalidade de produção em que este estado é um dado e uma questão. No processo, Werner Schroeter produziu dois dos filmes mais relevantes sobre a comunidade europeia, sem jamais pesar a mão sobre o tema.

Nuit de Chien (2008), Werner Schroeter

Nuit de Chien (2008), Werner Schroeter

Adaptado de um romance do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti, Nuit de Chien é, em certos aspectos, um dos filmes mais fáceis do diretor, muito por sua construção alegórica permitir que a mise en scène artificialista de Schroeter possa existir de forma mais codificada. O fascinante aqui é justamente estarmos diante de um filme construído contra o “lugar nenhum” da alegoria: à república latina qualquer para a qual o esquerdista sem nome, vivido por Pascal Greggory, retorna, Nuit de Chien responde buscando o especifico, o elemento exato que sabote o genérico do alegórico. Esse é o grande movimento político do filme. A cada nova sequência, a encenação de Schroeter se fecha mais sobre Greggory; sua posição é cada vez mais inevitável. Os planos de Nuit de Chien apresentam uma geografia de armadilha, como se Greggory se movesse inevitavelmente rumo a um caixão. Trata-se de um raro último filme sobre a inevitabilidade da morte.

Se a invisibilidade de Nuit de Chien é lamentável, ainda pior é a de Deux, um dos melhores trabalhos de Schroeter. Concebido como uma ode a Isabelle Huppert, como antes Schroeter compusera filmes para Magdalena Montezuma, Deux é um filme composto de dois elemento simples: a presença de Huppert, que interpreta duas irmãs gêmeas que ignoram a existência uma da outra e representam duas maneiras diferentes de se portar perante o mundo, e a montagem paralela que as aproxima. Sequência após sequência, vemos uma irmã para que, ao final, um corte nos leve à outra, e, nesta transição, Deux alcança sempre um efeito de maravilhamento impróvavel. A lógica que molda o filme é a de que o cinema permite esta aproximação que o mundo distancia. Dos mais básicos dos elementos, Schroeter ergue um filme que só poderia existir como cinema: seus sentidos e sentimentos são inseparáveis da sua forma.

Deux (2002), Werner Schroeter

Deux (2002), Werner Schroeter

Deux é também, com a possível exceção de O Rei das Rosas (1986), seu trabalho tardio que mais se aproxima do tom desconcertante de “tudo pode” dos seus filmes iniciais. Na cena em que as irmãs se reencontram, por exemplo, uma Huppert esfaqueia a outra e, para tentar ressuscitá-la, começa a beber do seu vômito. Como um filme construído sobre o próprio elemento de transição, ele fascina justamente na maneira em que aproxima os mais variados extremos – parte comédia de horror, parte história de amor fraternal. Como diversos outros filmes de Werner Schroeter, tanto Deux quanto Nuit de Chien são obras inclassificáveis, corpos estranhos num meio de cinema que tem pouquíssima utilidade para eles… são filmes memoráveis justamente pela disposição de serem obras “datados”, e políticos justamente pelo gesto da recusa a se enquadrarem. Nada, afinal, é menos obsoleto do que o autor seguindo a lógica da sua obra, rumo ao único final possível.

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