Olmo e a Gaivota (Olmo and the Seagull), de Petra Costa e Lea Glob (Dinamarca/Brasil/França/Portugal/ Suécia, 2015)

janeiro 25, 2016 em Cinema brasileiro, Dalila Martins, Em Cartaz

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Vitrine de espontaneidade
por Dalila Martins

A estreia da peça A Gaivota, de Anton Tchékhov, no Teatro Alexandrínski, na cidade de São Petesburgo, em 1896, foi um eminente fracasso. Se o público esperava reagir a uma estrutura aristotélica convencional, de encadeamento crescente rumo a um desfecho catártico, pautada por heroísmo e, em chave de ouro, interpretada por um rol de estrelas, algo gritantemente distinto ocorreu. Delineada por banalidades de situações cotidianas, em tom coloquial, sem impostações, e sustentada por imobilismos de personagens perante atos de pouca gravidade – mesmo um suicídio aparecia abafado, curiosamente deslocado -, tal encenação gerou uma retumbante monotonia nos espectadores. O próprio Tchékhov, apesar de consciente das mudanças dramatúrgicas que engendrava, insistindo no gosto do público pelo familiar e costumeiro – não nos palcos magnânimos da arte, mas na vida mesma! -, chegou a se abalar, prometendo nunca mais escrever para o teatro. Somente dois anos depois foi que a peça ganhou notoriedade, na montagem do Teatro de Arte moscovita, sob a regência de Konstantin Stanislávski e Vladimir Nemiróvitch-Dântchenko. Dessa vez, estabeleceu-se um reconhecimento entre a plateia e a narrativa justamente através da representação dramática de indivíduos comuns, os quais, embora afetados por uma realidade apática e fadados à incomunicabilidade decorrente do isolamento de suas perspectivas, mantinham impulsos vitalistas.

Há, certamente, algo deste afã em relacionar arte e vida, ou então, para permanecer na polarização tão cara ao cinema, ficção e documentário, no filme Olmo e a Gaivota (2015), co-dirigido por Petra Costa e pela dinamarquesa Lea Glob. Nele, presenciamos bem de perto as vicissitudes do início ao fim da gravidez de Olivia Corsini e de seu companheiro Serge Nicolai, ambos atores do Théâtre du Soleil. Já não fosse uma complexa transformação para o casal, a novidade implica também a dinâmica de seu grupo de trabalho, prestes a debutar a temporada de adaptação da obra tchekhoviana em Nova Iorque. No jantar em que a gravidez é anunciada publicamente, as reações são as mais diversas. Olivia quer continuar a empreitada e pede um voto de confiança, mas há relutância por parte de alguns – conflito que traz à tona o viés patriarcal arraigado na lógica laborativa. A impossibilidade de conservar o hábito de seu metiê, então, acentua-se quando um sangramento proveniente de um corte no útero, com sério risco de aborto, a obriga a um repouso pleno. A partir deste momento, a atriz se recolhe em casa e a câmera se torna uma espécie de confidente, registrando as mudanças físicas e psíquicas de seu corpo, por vezes com crua delicadeza, outras num invólucro lírico de bistrô.

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É também aqui, quando a oposição entre interior e exterior, gestação e carreira, concentra-se na convivência conturbada com Serge, que passa seus dias fora ensaiando, não limitado pela condição de gestante, que a estrutura do documentário se revela. A voz das diretoras interrompe as discussões entre o casal, propondo variações no encaminhamento das cenas. Questionaria-se, assim, pela verossimilhança refletida, pela problematização dos pontos de vista em desacordo no relacionamento filmado, a natureza das diferentes posições defendidas no seio mesmo da matéria plástica que compõe o real. Ou seja, o familiar se desvelaria como constructo, instância cuja organicidade não é clara nem transparente – algo condizente com as lucubrações inconstantes de Olivia a respeito das mutações por ela sentidas, rindo-se mas assustando-se, por exemplo, com a naturalidade com que uma senhora lhe contara sobre a queda de dentes durante a gravidez devido à fulcral necessidade de cálcio do feto. Ou mesmo com a sinceridade de Serge ao dizer a um amigo, na festa de celebração no pequeno apartamento parisiense, que ainda não tinha ideia de como é ser pai.

No entanto, a evidenciação da direção cinematográfica, em vez de se encontrar no controle das escolhas críticas de Olmo e a Gaivota, mostra-se muito aquém daquilo que o filme traz de mais contundente. Não que se trate aqui de tomar partido de um pretenso discernimento absoluto em termos de criação, mas de apontar os desvios pelos quais uma forma artística outrora pungente e politicamente inovadora, no sentido da reorganização do circuito de afecções que mobiliza experiências efetivas no público, liberando-o de uma rede normativa de expectativas, é aplicada no mais bem acabado produto de entretenimento, enquanto fórmula eficaz. Isto é, se em Tchékhov e Stanislávski a identificação dos espectadores com o ensemble indistinto da trama se dava como uma partilha de emoções sugeridas por subtextos silenciosos, por aquilo que não se encerra na razão e pode acometer qualquer um ou todos ao mesmo tempo, correspondente, ainda, a uma abertura à múltipla fragmentação monadológica característica da modernidade, cuja assolação é inevitável, os procedimentos de intervenção das diretoras no filme, ao contrário, acabam por impelir demasiadamente a fina membrana de indiscernibilidade que mantém vivo o equilíbrio entre singularidade e insulamento. Em outras palavras, a estratégia metalinguística de Olmo e a Gaivota, apesar de parecer sensível àquilo que nos sujeitos resiste à apreensão (pois não seria este o grande tema do filme, as profundezas desconhecidas do ordinário?), propaga, na verdade, um despreparo incorrigível para lidar com tamanha problemática – despreparo cuja vulgaridade não deixa de se expor com violência.

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O instante mais flagrante da tentativa incauta de manipulação em prol de efeitos predeterminados, disfarçada, porém, de olhar intimista repleto de enlevo, ocorre na cena em que Olivia observa as linhas e rugas de seu rosto no espelho. Atentos à bonita estranheza com que a atriz perscruta vagarosamente sua imagem, notando como experiências passadas marcaram sua pele, ouvimos Petra indagar, num tom que procura a polêmica, onde repousaria a insígnia da infidelidade nesse encadeamento. Olivia, então, retruca negativamente, sustando seus gestos ao encarar a diretora, como que espantada com a colocação invasiva proferida de modo tão displicente. A atriz diz não, com veemência, deixando cair a máscara do dispositivo de captação distanciada, falsamente suscetível à contingência.

Se, em Olmo e a Gaivota, a coalescência entre processo criativo e produto audiovisual foi motivada pela intenção de se deixarem transluzir autenticidades efêmeras, como numa vitrine de espontaneidade, percebe-se, pelo avesso, que os momentos de maior apelo são aqueles em que os mecanismos arbitrários de ordenação se exacerbam, gerando reações inspiradamente irônicas de suas personagens, como quando Olivia, ao receber um pedido de Petra para explicar melhor como se sentiu durante o dia, enumera os órgãos e tecidos do bebê que teria terminado de fabricar. Ou seja, diante da necessidade especulativa da direção, a atriz só pode responder com opacidade imaginativa. Não obstante tais rompantes de sinceridade contra a comunicação, em Olmo e a Gaivota o sensível é confundido com o acessível.

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