Olivier Assayas, o retratista da experiência

março 1, 2015 em Em Vista, Fabian Cantieri

Acima das Nuvens (2014), Olivier Assayas

Acima das Nuvens (2014), Olivier Assayas

por Fabian Cantieri

Houve um tempo no cinema em que se fez necessário tirar a câmera de seu pedestal de ofício. A necessidade de se desvencilhar do tripé era física. A câmera precisava estar em cena junto à ação que se desdobrava ao redor dela. O fora de campo poderia virar quadro ao passo de uma virada de ombro. Os ouvidos do cameraman eram guias intuitivos de para onde apontar a lente no segundo seguinte ao instante filmado. A necessidade provinha do real acontecendo, ou melhor, do documental: do descontrole ao redor do câmera. A partir da virada dos anos 1960, filmes como Les Raquetteurs (1958), Primárias (1960), Crônica de um Verão (1961) e Don’t Look Back (1967) instauram uma nova dinâmica do olhar, um olhar condicionado ao reflexo do corpo; não um olhar preparado e engajado com o que está diante dele, mas um olhar em constante movimento, que se recondiciona a todo instante a partir da ação que se desenvolve no seu entorno. Reformula-se a ideia de quadro. Os Cinemas Novos do mundo todo rapidamente se apropriam dessa maneira de se postar diante de personagens e ambiente e exploram essa nova forma de mise en scène por um novo fluxo da duração do plano – ela não se dá primordialmente pelos atores ou montagem, mas pela câmera. Nasce uma nova coreografia no cinema – mais errática, instável, na qual o extracampo é o vir-a-ser-campo, e remonta-se assim a cena dentro do próprio quadro (Glauber explorava essa ideia como poucos). Nos anos 1990, a câmera na mão já era algo mais do que natural, totalmente incorporada pelo cinema mainstream, com a diferença de que essa reconfiguração da câmera em cena era agora também recombinada a uma montagem frenética (pensemos no cinema de artes marciais de Hong Kong dos anos 1980 que desemboca nos filmes de ação hollywoodianos da década seguinte).

Existe um maneirismo rebarbativo por entre as interações cênicas de Olivier Assayas, mas todo este contexto prévio serve menos para tentar encaixá-lo numa linhagem histórica do que para anunciar uma certa liberdade que lhe interessa. Essa liberdade está não só na câmera na mão, mas também como embrião no cinema de Miklós Jancsó, que alcançava esse fluxo 3600 como quase ninguém por meio de maquinárias pesadas (Assayas se apropria bastante de gruas e steadicams para movimentos mais teleológicos, o que vai ganhando peso formal cada vez mais definidor a partir de Horas de Verão, 2008). Ela está assimilada na vontade de libertação de uma certa configuração do plano vinda do maneirismo oitentista, e conflagra a ideia de um fluxo de outra temporalidade, caminho este que encontra seu auge em Espionagem na Rede (Demonlover, 2002 – fotos abaixo). Ainda assim, filme a filme, isso é feito de forma mais irregular, solta e inconstante do que, por exemplo, o percurso percorrido com muito mais afinco e precisão por Claire Denis (Demonlover está para O Intruso, de 2004, como um dos projetos mais radicais em termos de experiências em fluxo, de criação de uma ambiência sensível que sobressaia ao puro encadeamento dos fatos).

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Assayas é um metteur en scène do embate entre a precisão e o inesperado, entre o controle e a surpresa. A todo momento, ele tenta captar essa realidade documental do set, da vida, numa mise en scène previamente coordenada. “Uma borboleta que passa no campo acaba com o drama; em Griffith ou Renoir ela o ilumina”, escreveu Biette. Assayas não é um demiurgo, um diretor-Deus como Kubrick, Bresson ou Hitchcock. Pra ele, Deus coordena a borboleta, é a poeira que levanta e revela a Graça a algo ainda mundano. Existe algo de impalpável entre os atores e a câmera, uma certa química pela qual o diretor deve aflorar e elaborar esse condicionante da imprevisibilidade. Parece assumir, às vezes sem nem saber ao certo o que esperar. Se filma uma cena de jantar num restaurante, começa o plano por uma mesa em uma diagonal atrás para movimentar-se até a mesa em questão, ao centro da atenção com os protagonistas. Em Água Fria (1994), logo antes da cena propulsora em que Christine (Virginie Ledoyen) diz que quer fugir de tudo e todos para onde sua velha amiga Chloé está, Assayas, em cima de um morro, filma os dois correndo ao longe, passando por trás de uma árvore, se encaixando perfeitamente no quadro de volta ao primeiro plano. Só corta quando chega a hora da reação de Gilles (Cyprien Fouquet). Essa é uma das estratégias mais recorrentes de seu cinema nos anos 1990. Prolonga-se a duração ao máximo até chegar à “inevitabilidade” do plano e contraplano formal de uma conversa, que sempre ganha um tom de importância maior por sua demora a vir.

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A carreira de Assayas como crítico na Cahiers du Cinéma entre 1979 e 1985 é conhecida, assim como seu altar de cineastas preferidos: Bergman-Bresson-Tarkovski-Kenneth Anger. Ele próprio sempre diz que sua decorrência de crítico a cineasta é mais uma extensão sobre o pensar cinema do que uma nova fase. Se com o dito “inesperado” pode parecer que existe frouxidão, a cena bressoniana de Gilles, ainda em Água Fria, cortando os acolchoamentos dos assentos do metrô, refutam tal tese imediatamente. Mas mais do que cenas-homenagens – não há como não remetermos esta a Pickpocket (1959) –, em muito de seu controle Assayas parece ter aprendido com um mestre da mise en scène clássica: Otto Preminger. O ensinamento básico de Rossellini está lá: “Eu tenho que inventar algo a cada trinta segundos”. Irma Vep (1996), de cabo a rabo. Os personagens de Preminger, como em Rossellini, estão sempre se mexendo, trocando de posições, invertendo o eixo da dinâmica da cena e, além disso, têm algo sempre a empreender dentro do plano para além da fala – façamos o teste e sigamos cada cena de James Stewart em Anatomia de um Crime (1959), corta para Sandra (Asia Argento impressionantemente sedutora) numa conversa dentro do escritório de Miles (Michael Madsen) em Traição em Hong Kong (Boarding Gate, 2007) sempre reordenando os papéis de sedução (se diz ex-apaixonada para depois se apaixonar), puxa um cigarro que ele acende, sem antes ela tomar-lhe a mão, fala com ele distraída com o celular até a certa altura, como se falassem sobre sabores de sorvete, senta na mesa e põe a mão por debaixo da calcinha sem falar qualquer palavra fora do tom da conversa. As palavras em si nunca são de extrema poesia ao fim do século XX, mas os gestos ainda têm o poder do erotismo.

Traição em Hong Kong, Olivier Assayas

Boarding Gate (2007), Olivier Assayas

Na virada de século, uma virada de paradigmas – nasce uma rede, esvaem-se fronteiras e o mundo se concretiza global. Quase todos os filmes de Assayas são, no mínimo, bilíngues. De Irma vep a Clean (2004), há sempre uma tentativa de desvirtuar o olhar puramente ocidental (com exceção de Fin août, début septembre, 1999). É a jogada de Maggie (Maggie Cheung), uma musa – talvez só para o diretor – do cinema de ação de Hong Kong num filme de Louis Feuillade. É o que o novo diretor nunca vai entender de René Vidal (Jean Pierre Léaud) – como instituir uma aculturação, ainda por cima tão distante como a oriental, num filme tão eminentemente francês? Muitas vezes essa aproximação de mundos distantes é negativa, quando não catastrófica: o culto banal à celebridade se intensifica, como em Acima das Nuvens (2014). Em Demonlover, a imagem do anime pornô japonês se delibera como um novo fetiche. Existe a cultura local, e sua transcendência é a possibilidade de um novo mercado. O mundo como mercado em rede, como prótese do consumo, faz com que se criem as conexões mais improváveis. Como diria Viveiros de Castro, “o símbolo da nossa relação com o mundo hoje é o drone, é o tipo de guerra que os Estados Unidos fazem com aqueles aviões não tripulados ou apertando um botão – você nem vê a desgraça que você está produzindo”. As ações estão tão distantes do pensamento e sua projeção que um adolescente no sul dos Estados Unidos pode estar na tranquilidade do lar pagando pela tortura e estupro de uma mulher do outro lado do oceano como se aquilo tudo fosse virtual. Conexões facilitadoras que levam à dormência.

Carlos, o terrorista marxista-leninista, inimigo público número 1 dos anos 1970 e 1980, é o personagem avant-garde símbolo do amálgama cultural no filme televisivo de 2010. Nascido na Venezuela, Carlos se diz peruano, luta pelo ideal palestino, fala inglês, árabe, francês, espanhol e alemão e enfatiza a importância do movimento ser internacionalista; a causa é una e global – luta pelos oprimidos do mundo, não mais de uma nação específica. Ao mesmo tempo, é uma criatura da mídia que reverbera sensos comuns, sentencia frases inócuas autoafirmativas (como sua luta contra o imperialismo e o capitalismo), critica até sua mulher com o velho preconceito à petit bourgeoisie, classe na qual Carlos não percebe muitas vezes estar imiscuído (como na cena da piscina, e especialmente quando se torna pai). Para a esquerda, a burguesia era recorrente e abundante àquela altura, com o florescimento da contracultura e sua suposta alienação política. Para Assayas, ali nos anos 1970, cenário de Água Fria e Depois de Maio (2012) – bildungsroman espelhos –, a relação com o cinema era dicotômica: ou se direcionava para a poesia e o desabrochar de uma nova conjuntura da arte que voltava a se ligar com a natureza (não à toa, época auge do folk), com um estado mais bruto da arte (depois vem o punk); ou ligava-se ao cinema direta e eminentemente político. Em Depois de Maio, vê-se muito desse embate e muito da discussão conteúdo versus forma, questionando se o cinema político deve se apropriar da linguagem burguesa (como se isso existisse), se deve criar uma linguagem nova do proletariado ou se, no fundo, isso não importa, pois importante mesmo é a mensagem que esse proletariado recebe. Esse é o conflito que rebate entre os novos Gilles (Clément Metáyer) e Christine (Lola Créton): se enquanto em Água Fria eles já estão apartados e marginalizados de uma sociedade, muito por uma escolha mútua, em Depois de Maio o casal é dividido; Gilles quer ser pintor abstrato, Christine segue um grupo de documentaristas marxistas. O afastamento dessa esquerda é sempre claro por parte de Assayas – no primeiro, só existe um universo retratado; no segundo, Christine se arrepende, larga o grupo e corre atrás de Gilles. Assayas vê as ideias de Guy Debord sendo vividas e reverberadas espontaneamente.

“Os anos 1970 eram assustadores. Era um tempo, diferente de hoje, quando as pessoas botavam suas ideias em prática – botando suas vidas em risco. Eles decidiram que existia um universo paralelo chamado ‘contracultura’ com seus próprios códigos, seus próprios canais de comunicação, seus próprios valores, próprio lugares onde se podia habitar. Você dava um passo fora do velho mundo para entrar num paralelo em que se podia ser você mesmo e fazer algo que nenhuma outra geração havia feito: experimentar com sua própria vida, seu próprio destino. Houve muitas baixas. Então os anos 1970 não foram tão engraçados. A obsessão com a revolução, a brutal subversão do capitalismo moderno pela procura pessoal e espiritual. Era uma violenta rejeição a tudo que nos foi ensinado. Claro que era loucura, claro que era utópico e tinha seus enormes limites, mas, ao mesmo tempo, havia algo de heroico e corajoso ali. Havia uma beleza naquilo”, disse em entrevista ao Brooklyn Rail.

Há uma beleza fugidia em Depois de Maio. Mais se perde do que se toca. Decantada. Os últimos filmes de Assayas procuram menos a Graça com a câmera. Têm um quê de velhice no sentido de um esperar acontecer mais prostrado. Expõem o espectador a outro tipo de busca. Nesse sentido, Irma Vep, Água Fria e Boarding Gate são filmes de superfície – a relação entre o filmar e o dar-a-ver é mais sincrônica, enaltecendo uma transparência no movimento reflexivo da câmera. A partir de Horas de Verão, o quadro se estanca e espera. Ali, particularmente, faz todo o sentido. É um filme de espera pela morte, com uma melancolia conformada, há uma imanência da morte como presença e da vida como obra de arte (depois a obra de arte se transfigura em vida novamente, fechando o ciclo debordiano da arte como cotidiano). Em Acima das Nuvens, a gestalt é psicológica e teatral, não tanto cutânea. Menos cinética, mais dramática. O conflito se dá pelas dores do envelhecimento de Enders (Juliette Binoche) e do espelho rejuvenescido em Valentine (Kristen Stewart). Das tantas metalinguagens sobre metalinguagens, a que sobressai é a de Juliette Binoche sendo também personagem, carregando o histórico de atriz multicultural (o universo do cinema americano versus o cinema europeu) e polivalente (assim como Enders, Binoche faz o dito cinema de arte – Assayas, Kieslowski, Kiarostami – e o blockbuster americano de tela verde, como o Godzilla de 2014). De certa forma, Acima das Nuvens é a epítome debordiana junto a Horas de Verão – uma relação de troca de experiências entre atrizes (Binoche-Kirsten), que se dá em tela através da narrativa entre Enders e Jo-Ann Ellis (Chloë Grace Moretz), um espírito vivido em set transposto ao filme, tentando levá-lo com certo grau de pureza.

Essa pureza está colada ao espontâneo. Assayas é um retratista da experiência. Seus erros e acertos – bem consideráveis para os dois lados da balança – fazem parte do pacto de enfrentar o risco iminente do agora. Ele naturalmente odeia ensaiar. Prefere investigar o que se retém da experiência de filmar. Os meses de set não deixam de ser uma passagem de amadurecimento, leitmotiv chave para sua obra. O que perdura? Como se dá a escritura dessa persistência das coisas? A realidade integra, se aparta e/ou assombra o cinema? No final das contas, voltamos sempre a nos questionar sobre o gesto primeiro, autoritário e definidor do que enquadrar, como e quando reenquadrar e de como reagir ao fora de quadro. O estilo sempre será antes de tudo uma questão política.

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